Legislação Atualizada da Ilha Fictícia de Sotul

por Guilherme Alvarez Ferreira

1o Ato: Exposição

O dia era hoje. O nonsense e o teatro do absurdo perdem seu apelo, banalizados. Jornalistas tentam explicar o inexplicável, comediantes não encontram assunto que possa ser extrapolado, historiadores do futuro estão condenados.

Até vinte e tantos anos atrás, pouca coisa destacaria a pacata Sotul de outras ilhas e ilhotas do nosso extremo oriente: uma população humilde, lacônica, de hábitos simples e economia baseada na fabricação de eletrônicos falsificados.

2o Ato: Ascenção

Como descrever o que acontece a seguir? Economistas descrevem como “o milagre da ilha de Sotul”, charlatões descrevem como “mudança de mindset”, o Chefe de Estado de uma grande potência mundial – na privacidade do seu escritório – descreve como “motherf*ckin’ lucky bastards”. Eu, na minha humilde posição de narrador não-tão-onisciente/não-tão-inconsciente, me limito a explicar a versão que se popularizou na própria ilha.

O que aconteceu, afinal? Prosperidade. Suficiente para ser considerada suspeita. Ceticamente, podemos atribuir isso à gestão competente da região, tão certeira em suas decisões que parece adivinhar o futuro com precisão.

Mas – peculiarmente – ninguém sabe, ao certo, quem chefia aquela nação. Nem seus moradores, nem os diplomatas, nem mesmo a não-tão-onisciente/não-tão-inconsciente internet. Seria um ditador? Um partido? Uma ilha vizinha? Por mais sensatas que essas sugestões sejam, a hipótese que se popularizou entre os habitantes da região foi mais criativa que isso. Pela definição popular, a ínsula seria administrada por um bichinho virtual que, de alguma forma, foi dotado de inteligência artificial super avançada, possível fruto de experimentos conduzidos por alguma organização secreta que se ocultava no interior da ilha. A partir daí – sabe-se lá como – o brinquedo assumiu a liderança do local. Talvez a criatividade da narrativa tenha se esgotado no meio do processo, talvez o pequeno brinquedo tenha seus segredos.

Apesar do absurdo da tese, nada parece convencer a civilização sotuliana de que ela esteja errada. Devemos reconhecer, também, que não há motivação para se investigar algo, levando-se em conta os benefícios da eficiente administração misteriosa. E então a apatia foi posta à prova.

3o Ato: Clímax

Por meios extra oficiais, a legislação oficial de Sotul é publicada na internet, um território que talvez não seja onisciente, mas certamente pode tornar algo onipresente. E o mundo não-sotuliano entra em estado de choque, percebendo que a teoria do bichinho virtual talvez seja a menor das insanidades daquela pacata sociedade.

Comunicados e orientações internacionais tentam advertir os cidadãos de Sotul de que há algo errado. Que a repentina prosperidade do território sotuliano não passa de uma grande coincidência e que sua suposta liderança é alguma espécie de surto coletivo. Que talvez não haja real sentido na lei recém-promulgada que proíbe o uso de tênis azuis em domingos ensolarados; ou na que autoriza furtos realizados por senhoras octogenárias; tampouco na multa para quem tenta cantar de boca fechada. Especialistas renomados analisam e destrincham dezenas de artigos, todos de autoria recente e supostamente anônima, todos alarmantes.

4o Ato: Declínio

Após uma acirrada discussão entre os representantes da ilha e a comunidade internacional, o consenso é que o hipotético bichinho virtual estaria apresentando defeitos, algo previsível em um eletrônico de baixa qualidade. Em uma reviravolta histórica, a comunidade de Sotul aceita os males e os benefícios da democracia, anunciando eleições governamentais.

5o Ato: Desfecho

O dia ainda é hoje. Comentaristas de todo o mundo debatem sobre as controversas eleições da recém-presidencialista nação de Sotul. Seus dois principais candidatos – um despertador eletrônico e uma calculadora – parecem disputar a liderança. Mas ainda é cedo para descartar a possível ascensão da terceira via, representada por um microondas com acesso à internet.