Ermenildo, o pavão gótico

por Leouac

Precisamos começar dizendo o óbvio: Ermenildo era um pavão. Não, desculpem, não é bem isso! Ermenildo É um pavão! E como todo pavão, na verdade, todo pássaro, nasceu feio e pelado. Depois foram chegando as penas todas e claro que beleza é diferente para cada um, mas dizem por aí que os pavões são muito bonitos, e Ermenildo, como pavão, tinha lá também a sua beleza de pavão.

Só que Ermenildo era diferente! Talvez por fora tivesse todas aquelas cores doidas que parecem um mosaico, e quando abria a cauda todo mundo olhava, tinha bicho que até caía pra trás de tão maravilhado. Só que Ermenildo quase nunca abria a cauda!

É que ele não queria ser um pavão. Diferentemente da maioria dos pavões, Ermenildo queria sempre passar despercebido. Saía mais à noite do que de dia e, na adolescência, todos achavam que ele era muito rebelde.

Não tem problema nenhum em ser rebelde, principalmente na adolescência. A rebeldia não é nada senão a vontade de se afirmar diferente! E poxa, não somos todos diferentes uns dos outros? Às vezes quem está à nossa volta, até quem a gente ama e ama a gente de volta, não quer aceitar as nossas peculiaridades, o que faz de nós únicos, e daí o jeito é ser rebelde mesmo! É tentar ser o que você é com ainda mais força que é pra calar a boca de todo mundo, ou pelo menos pra falar mais alto.

Só que nem sempre você sabe direito o que você é, ainda mais tão cedo, então a rebeldia se vira contra você. E assim o que acontece é que você fica brigando com todo mundo dizendo que é uma coisa que você não é, e se bobear ainda acaba sendo sem ser, o que faz muito mal. É isso que às vezes faz um pavão, que é um pavão, dizer que não quer ser pavão.

Os outros pavões não gostavam nada daquilo. Eles achavam que o Ermenildo não querer ser pavão era um desprezo por toda a pavonice deles. Como se ele não gostasse mais de pavões, achasse os pavões feios! E isso não era nem um pouco verdade. Ermenildo gostava de pavões, só que não é só porque você gosta de alguma coisa que você quer ser que nem ela, e ainda bem, porque senão todo mundo ia acabar sendo uma cópia de uma cópia de uma cópia mal feita de uma outra cópia que alguém achou legal e decidiu copiar! Mas justamente por isso eles o tratavam muito mal, porque tem gente que acha que tratando os outros mal vai conseguir fazer eles mudarem o jeito deles. É a maior baboseira isso! Primeiro porque não dá pra mudar o jeito de ninguém, quem tem que mudar é a própria pessoa e por vontade própria; segundo porque se você consegue e a pessoa muda, acaba sendo pior pra ela, que se distancia de si mesma e demora um tempão pra voltar a se encontrar; e terceiro porque, poxa, não é legal tratar os outros mal! Só quem ofende alguém sendo quem é, é quem é quem é ofendendo alguém!

Por isso Ermenildo fugiu. Fugiu numa noite escura, de lua escondida, aproveitou os seus hábitos noturnos, estava todo mundo dormindo quando ele foi embora.

Enquanto caminhava, passou na frente do cemitério. Ele tinha um pouco de medo de cemitério, porque os pais dele contavam histórias de fantasma para ele quando ele era criança. Ia passar bem rápido, mas de repente ouviu umas risadas vindo de lá de dentro! Ué, e quem será que, tarde da noite, ria dentro de um cemitério? Será que eram os fantasmas?

Mesmo com medo ele acabou indo ver, ficou muito curioso! Além disso pensou que fantasma que ri não deve fazer mal a ninguém, e quem sabe ele ficando amigo ainda ganhava proteção dos fantasmas que não riem, porque esses sim parecem mais perigosos.

O que encontrou foi um conjunto de corvos, que conversavam, riam, e tomavam Coca Cola sentados em algumas lápides bem bonitas, enquanto escutavam músicas tristes sobre morte e desilusão amorosa. Cada corvo se vestia diferente, tinha um com uma corrente de ouro no pescoço, e outro com anéis nos pés, e mais um com um colar de ossos de esquilo... E no chão umas caveirinhas de bichos pequenos, que eles tinham colocado em roda e pareciam que estavam conversando.

Ermenildo logo lembrou o que tinha aprendido sobre corvos, que eles eram ladrões, que eles faziam brincadeiras de mal gosto, e pensou que o colar e os anéis deviam ser de outro bicho qualquer que devia estar procurando achando que perdeu. Mas alguma coisa o atraiu para aqueles corvos, e como ele tinha deixado a carteira e o celular em casa e não tinha nada que pudesse ser roubado, resolveu que não tinha o que perder conversando um pouco com eles.

Eram cinco corvos, um se chamava Noite, a outra Bruma, mais um chamado Escuridão, uma chamada Tempestade e, finalmente, a Bernadete. Com esses nomes sofisticados, Ermenildo ficou com vergonha de falar o seu, achou logo que todos iam começar a rir! E o pior é que riram mesmo, mas sabe, os corvos são assim, eles riem de tudo, brincam com tudo, e na verdade não querem mal a ninguém. Quer dizer, às vezes querem. Mas daí eles não riem.

Ainda assim Ermenildo ficou todo envergonhado, e Noite falou, ainda rindo:

- Relaxa, o meu nome na verdade era Ademar! Só que daí eu achei que não era nome de corvo e resolvi mudar, a gente não tem que aceitar tudo que deram pra gente! Aqui os nomes são todos inventados, só quem não mudou foi a Bernadete, justamente porque achou que ia ser engraçado uma corva chamada Bernadete, que é um baita nome de ovelha!

E Ermenildo relaxou! Bebeu um pouco de Coca Cola com eles também e cada um falou um pouco da sua vida. No fundo, também eram rebeldes! Só que eram rebeldes sem deixar de ser corvos, gostavam de coisas brilhantes, riam de tudo, brincavam com quem não queria brincar com eles... Mas aquilo que Ermenildo tinha aprendido sobre os corvos era tudo besteira, eles até pegavam umas coisas que achavam no chão, mas se o dono aparecia buscando logo devolviam. Os anéis quem comprou foi a Bruma mesmo, que usava eles orgulhosa nos dedos. E o colar foi um presente. De noite vinham no cemitério, até porque já tinham toda a estética certa para esse tipo de atividade! Ermenildo ficou pensando que só queria ter penas pretas também, que assim ninguém ia prestar atenção nele.

Os corvos disseram que se ele quisesse encontrar eles de novo, toda semana eles iam no cemitério mais ou menos naquele horário, e que ele estava convidado! Brincaram que as penas dele não encaixavam direito naquele lugar, mas era só uma brincadeira de corvo mesmo. Na semana seguinte vinham mais uns dois amigos que não tinham podido dessa vez porque tinham um show marcado, mas eles tinham certeza que todo mundo ia se dar bem.

Ficou lá a noite inteira conversando com os corvos, e quando eles foram pra casa percebeu que não tinha onde dormir!

Saiu andando pela floresta, meio perdido, procurando um cantinho qualquer. Encontrou uma toca vazia, e primeiro achou melhor não roubar a toca de ninguém, mas pensou que provavelmente o bicho que morava ali não ia voltar até de noite e eles nem iam se cruzar!

Só que ele acabou dormindo muito! E foi acordado por uma criatura que ele não conseguia identificar qual era.

- O que é você? – ele perguntou, sem perceber que isso não é pergunta que se faça.

E a criatura respondeu:

- Ué, eu sou eu! Como assim o que é você? E por que eu tenho que carregar um rótulo comigo de lá pra cá? Às vezes as coisas só são, e é bem melhor assim!

Ermenildo não sabia direito o que falar, estava meio envergonhado, nunca tinha pensado nisso! Ficou em silêncio um tiquinho e o bicho continuou:

- Me chamam de Cris! E não se preocupa, muita gente me pergunta isso, eu gosto de dar um susto nas pessoas que é pra ver se elas pensam um pouquinho ao invés de ficar repetindo o que aprenderam. No começo eu era um esquilo, agora eu sou só eu mesmo!

Ermenildo ainda estava muito curioso, mas percebeu que essa coisa de sair perguntando sobre a vida das pessoas não é muito legal, porque ninguém tem a obrigação de sair tirando as suas dúvidas, e não é sempre que você quer sair falando sobre si mesmo para estranhos que invadiram a sua toca. Mas ele estava curioso, então resolveu perguntar bem de mansinho:

- Cris, não precisa responder se não quiser, desculpa ficar perguntando besteira, mas porque você está coberto de penas?

- Imagina! Mas é cobertA de penas. – e Ermenildo já ficou cheio de vergonha, só que Cris continuou falando como se aquilo não fosse nada – É que eu gosto de fazer cosplay de andorinha! Estou até aprendendo a cantar, você quer ver?

Antes que ele pudesse responder, Cris fez o barulho mais assustador e mais distante do canto de uma andorinha que se pode imaginar, enquanto Ermenildo tentava muito não começar a rir.

- Pode rir, não tem problema! Na verdade eu acho até bom que às vezes apareça alguma coisa pra me lembrar que eu sou um esquilo! É bom ser esquilo também! A gente não precisa lutar contra tudo!

Só que essas palavras ainda não estavam entrando na cabeça de Ermenildo. Ele realmente não queria ser um pavão, queria ser outra coisa qualquer, queria viver no cemitério escutando músicas tristes e definitivamente não queria pavonear como pavoneavam os outros pavões, não era muito de se exibir. Ficou pensando se devia pedir penas para os corvos e fazer cosplay de corvo, mas lembrou que ia precisar de tantas penas que os corvos iam acabar todos pelados.

Na semana que se seguiu, Ermenildo viu um pouco de tudo. É que os pavões são muito conservadores, então se você só convive com pavões às vezes você não tem noção da diversidade que tem no mundo! Viu dois guaxinins que tinham adotado um filhote de jaguatirica, viu um tucano que não queria saber de namorar e falava que não queria ter filhos, viu uma cobra que passava framboesa nos lábios pra eles ficarem vermelhos... Só que essa última ele viu de longe e já saiu correndo, porque
não tinha como saber se ela estava com fome!

E não é nem que de repente todo mundo fosse tão diferente do que ele já conhecia. Tem gente que diz que a gente só vê o que quer ver, só que isso é uma grande mentira! Na maior parte do tempo a gente acaba vendo o que a gente precisa ver, e Ermenildo precisava ver que o mundo era grande e diverso.

A semana inteira dormiu na toca da Cris, como convidado. Estranhou um tocão desses ser de um esquilo, mas achou bom que tinha lugar pra ele! Ficaram amigos, conversavam sobre como é ser diferente e Cris consolava Ermenildo dizendo que ele ainda ia encontrar a sua verdadeira identidade.

Um dia antes de voltar pro cemitério, caiu uma baita chuva. Veio um relâmpago derrubar uma árvore, causando um pequeno incêndio que só não foi pra frente porque era muita água pra apagar. Daí ele teve uma ideia.

Foi ali onde ficou queimado e rolou no chão até ficar todo preto! Não deixou nem um pedacinho da sua penugem original de pavão. Se olhou refletido no rio e achou lindo! Cris quando viu até falou que gostou, mas não deve ter gostado não, porque os olhos não brilharam como quando a gente realmente gosta de alguma coisa. Mas no fundo pensou que talvez aquela pretidão fosse parte do caminho de Ermenildo e de certa forma achou bom, fora que ele estava tão animado que nem percebeu que não causou tanto sucesso. Queria ver o que os corvos achavam.

Chegou meio tarde no cemitério. Na verdade ele era muito pontual, só que quando você é muito pontual você logo descobre que as pessoas não são muito pontuais, daí você tenta ser menos pontual pra não ficar esperando tanto e às vezes é pontual de menos e quem fica esperando são os outros!

Quando chegou já estava o grupo todo ali, quer dizer, os mesmos de antes, porque os dois que eles disseram que iam vir ainda não tinham chegado. Acho que ou eram ainda menos pontuais do que as pessoas normalmente são ou eram super pontuais e de tanto tentar não ser acabaram super atrasados.

Ermenildo ficou chateado! Ninguém deu muita bola pra sua pretidão, até falaram um “daora”, “ficou massa” e coisa assim, mas deu pra ver que foi só por falar. É que os corvos já são pretos e sempre foram pretos, o preto não é uma coisa nova pra eles assim como as cores de um pavão não eram novas para Ermenildo. E ficaram lá conversando.

Chegaram outros dois corvos voando, de repente. Vieram se exibindo, fazendo círculos enquanto desciam, brincando de urubus. Um deles se chamava Vânio e o outro Gregor. Chegaram todos felizes, falando que o show tinha sido um sucesso, que as menininhas e os menininhos foram à loucura, que a banda estava voando (literalmente), que em pouco tempo todo mundo ia estar ouvindo “Os Homo Sapiens”, e mais um monte de coisa.

Ermenildo nem ouvia nada, só ficava olhando pra cabeça de Gregor, que tinha um moicano verde. Não resistiu, acabou perguntando.

- Como é que você conseguiu penas verdes?

E Gregor respondeu:

-Na verdade não são penas, é grama! Eu tenho um amigo que é cabeleireiro. É que eu sou punk.

Tudo para Ermenildo era novo e diferente. O jeito dos corvos, os bichos da floresta... O mundo era grande e ele nem sabia! Isso às vezes acontece quando você sai um pouco dos círculos que você está acostumado a frequentar, você descobre que tem muita coisa doida acontecendo que você nem tinha ideia! E fica tentando encontrar alguma coisa parecida com você.

Ficaram conversando e ouvindo músicas tristes, e quando Ermenildo tentava cantar o refrão ou balançava a cabeça no ritmo da música os corvos riam, só que ele já não se importava mais, porque começou a entender que caçoar dos outros era o jeito dos corvos de demonstrar afeto.

Perguntou:

- O que vocês tocam na banda?

Ao que Gregor respondeu:

- É um grupo de pagode – e Ermenildo ficou maravilhado que um corvo punk pudesse estar num grupo de pagode.

Gregor continuou

- Eu sou baixista e vocalista. O Vânio na verdade não toca nada, ele é meio que o nosso guru espiritual, ele é muito sábio... Vânio, fala alguma coisa sábia aí!

E Vânio disse, simplesmente:

- Vai chover...

Dito e feito, começaram a cair umas gotas bem grossas, que ainda não eram uma chuva chuva mesmo mas que já anunciavam que todos iam tomar um belo banho!

As gotas caindo no pavão começaram a lavar sua pintura de carvão, e ele ficou meio desesperado, como se estivesse ficando pelado na frente de todo mundo, só que Bernadete olhou pra ele e falou maravilhada:

- Isso é a coisa mais bonita que eu já vi!

É que o preto começou a escorrer e parecia que o pavão todo chorava lágrimas negras, enquanto por baixo surgiam penas de mil cores diferentes, era realmente um espetáculo de se ver! Bernadete continuou:

- Nossa gente, que lindo! Espera que eu vou tirar uma foto pra você ver melhor! Abre a cauda! – E tirou o celular da bolsa.

Ermenildo ainda estava meio descrente da declaração de Bernadete, achou que talvez ela estivesse brincando com ele. Mas quando viu a foto não podia nem acreditar no quão bonito estava! Tentou virar a cabeça pra ver mesmo se aquilo era real, vai ver era algum efeito do Instagram, mas não era não! Nunca se sentiu tão lindo!

E fez o que nunca pensou que ia fazer na vida, pavoneou! Andou de um lado para o outro se exibindo, fez aquele barulho engraçado que os pavões fazem e quando os corvos começaram a dar risada ele lhes lançou um olhar meio blasé típico de modelo de capa de revista. E Vânio, que já conhecera o pavão negro, disse simplesmente:

- É, definitivamente é um pavão!

Daí Ermenildo entendeu duas coisas: a primeira é que na sua simplicidade Vânio realmente era muito sábio, e a segunda é que sim, ele era um pavão! Não precisava ser um pavão como todos os outros pavões, mas era um pavão! Começou até a pensar que não existia “ser um pavão como todos os outros pavões”, porque talvez cada pavão fosse um pouquinho diferente e na verdade eles só tivessem vergonha de mostrar!

Lembrou da sua avó pavoa, que viveu muito tempo, tanto tempo que acabou até ficando meio careca, o que não é normal nem nos pavões velhos. E os vizinhos todos ofereceram as penas que caíam para repor a cabeleira, só que ela disse numa voz tranquila:

- Sabe que eu gosto assim?

Na época ele achou, assim como todos os outros pavões, que talvez fosse coisa da velhice, que ela estava meio gagá. Mas agora pensava: talvez ela tenha gostado de ficar diferente mesmo! E talvez pudesse ser diferente sem deixar de ser pavoa!

Só que a chuva apertou e foi lavando as penas até que do preto do carvão não restasse nada, o que deixou Ermenildo meio triste, e todo mundo percebeu. Foi o Escuridão que falou:

- Pô, ficou legal mesmo! Muito massa! Um look bem gótico assim, um pavão inteiro chorando, nunca vi coisa igual. Mas não tem problema que passou, acho que até dá pra fazer um negócio parecido que dure um pouco mais. Ô Gregor, seu cabeleireiro também tinge, não tinge?

- Tinge sim! E o cara é bom, viu, outro dia eu estava lá esperando a minha vez e saiu um poodle completamente cor-de-rosa, tive até que me esforçar pra não ficar olhando, senão ficava chato! Leva a foto que a Bernadete tirou pra ele e quem sabe ele não arranja um visual bacana pra você!

Ermenildo ficou animado, mas pediu pra Bernadete ir junto, já que a foto estava no celular dela e ele não queria passar em casa pra pegar o seu. Foram no dia seguinte.

Chegaram lá assim que abriu, que era pra não pegar fila. Ermenildo ficou surpreso de ver que o cabeleireiro era um tatu! O nome dele era Dominic, e já foi logo falando:

- Um pavão, muito bem! E o que vai ser? Uma aparada nas penas pra dar uma textura? Uma escovada? Quer que fiquem mais brilhantes? – E Ermenildo ficou meio envergonhado, porque poxa, ele não queria o que os pavões queriam! Nem falou nada, quem falou foi a Bernadete:

- Nada disso, meu chapa, ele quer é assim! Rola? – e mostrou a foto.

Dominic olhou bem e deu pra ver um baita sorriso se formar no seu rosto!

- Mas é disso que eu gosto! Tem que ser diferentão mesmo, essa coisa de ser diferente só por dentro não funciona, tem que botar pra fora! Esse aí você fez com carvão, né? Nossa, o escorrido ficou muito lindo! O problema é que não dura. Dá pra fazer parecido com tinta de lula, mas eu tô achando que ainda dá pra ir além! No corpo a gente deixa mais preto, mas intercalado com umas penas coloridas à mostra bem envernizadas assim pra sobressair. O preto meio opaco e as penas brilhantes! Vai ficar lindo! E o preto chorado só na cauda, quando você abrir vai ser um arraso!

E Ermenildo gostou da ideia, sentou na cadeira de frente pro espelho enquanto o tatu ia pegar os materiais todos

Quando Dominic voltou, disse:

- Cara, eu acho que ia ficar muito maneiro dar um trato nesse seu topete pra ele ficar caído, tipo uma franja, o que você acha? A maquiagem natural dos olhos já tá legal assim, talvez uma única lágrima desenhada de um lado só!

Ermenildo até gostou da ideia, mas tinha começado a ficar meio inseguro. Como o cabelo era dele resolveu falar alguma coisa antes que fosse tarde demais:

- Dominic, sem querer ofender, mas como é que você sabe cortar cabelo se você é careca? Tem certeza que vai ficar legal?

E o pavão deu muita sorte nessa jornada de descoberta, porque fez muita pergunta besta e tomou pouca patada! Isso nem sempre acontece, é preciso acreditar nos outros, respeitar os outros, e nem sempre entender os outros! Ué, por que que a gente tem que saber de tudo? O importante é saber sobre você, sobre os outros o que eles quiserem contar já está mais do que bom!

Mas o tatu não se irritou, só que também não respondeu as coisas rindo como os corvos. Se debruçou sobre o pavão e, através do espelho, olhou fundo nos seus olhos.

- Você é um pavão que quer ser gótico. Veio aqui por indicação de um corvo que queria ser punk. Outro dia atendi uma lebre que queria o cabelo que nem o do Ronaldo na copa de 2002. E eu não posso ser um careca que quer cortar cabelo? Não gostou do moicano do seu amigo? Pois bem, confia! Eu sei o que eu faço! Além disso a tinta sai, se você gostar vai ter que voltar de vez em quando, e se não gostar é só esperar, pronto! As mudanças não precisam durar para sempre. Às vezes quem muda é a gente, e daí fica pra trás o que a gente mudou antes! Quer que eu faça ou não quer que eu faça? A decisão é sua, não tem problema.

Ermenildo mandou fazer! Honestamente? Saiu melhor do que a encomenda. Infelizmente não deu tempo de Bernadete ver, ela tinha um compromisso e teve que ir embora.

Quando estava pronto Dominic ainda disse:

- Olha, vai ficar melhor de dia, com o sol refletindo nas penas. De noite fica legal também, mas de dia vai ficar um arraso! Se gostar volta daqui a um mês ou quando começar a desbotar. Um abraço, amigo, vai na paz!

Saindo de lá, Ermenildo pensou: “quero mostrar para os corvos!”. Só que ainda tinha uma semana para o encontro no cemitério. Daí ele pensou: “quero mostrar pra Cris!”. Só que ele não sabia onde encontrar ela naquele horário. Então ele pegou o mesmo pensamento e cortou uma parte fora, ficou assim: “quero mostrar!”. E nunca se sentiu tão pavão! Queria sair se exibindo, agora sim sentia que podia viver a sua pavonice, porque agora se sentia ele mesmo! E resolveu voltar pra casa.

Quando chegou na vila dos pavões percebeu que todo mundo olhava feio pra ele. Uma tia chata veio até perguntar:

- Menino, o que é que você fez com as suas penas? Era um rapaz tão jeitoso!

Mas ele nem respondeu e nem se importou. Andava rebolando, e por estar tão diferente chamou muito a atenção, tanto que veio todo mundo olhar. Quando percebeu que estava quase a vila inteira ali e ele bem no meio, fez uma cara de quem não liga pra nada e abriu a sua linda cauda!

Os olhares de reprovação de repente mudaram, e os pavões olhavam embasbacados para aquela obra de arte. O preto escorrido, as penas brilhantes, era absolutamente maravilhoso! De algum lugar da plateia veio uma voz, quebrando o silêncio:

- Meu Deus! É lindo! – e todo mundo concordava.

Ser aceito de volta foi uma delícia, mas Ermenildo percebeu que se isso não acontecesse não seria o fim do mundo. O importante é que ele tinha se aceitado. Viveu muitos anos ainda, indo ao cemitério toda semana com os corvos, visitando Cris na sua toca, e pavoneando, sempre. Mudou várias vezes o penteado, experimentou novas cores, tirou a franja, colocou a franja, tentou fazer a franja sozinho e deu errado, tomou uma baita bronca do Dominic quando foi lá pra ele arrumar, mudou a maquiagem, brincou com a sua aparência. Além de ser visto como um pavão bonito, acabou também sendo reconhecido como um pavão muito sábio. Alguns pavões experimentaram coisas diferentes por causa dele, toda a vila dos pavões começou a entender que a diferença não era ruim não, eles eram mais bonitos diferentes! Quer dizer, sempre tem gente que demora um pouco mais pra aceitar a mudança, mas Ermenildo conseguia ser feliz ali.

De vez em quando vinha um pavão que, provavelmente com medo de fazer alguma mudança também, perguntava mais ou menos assim:

- Mas você não tem que se aceitar como você é?

E ele respondia, simplesmente:

- Mas é claro! Só que quem disse que como você está é o que você é?

E seguia em frente, o rosto feliz, as penas chorando. Um visual de parar o trânsito! Único! Sem ninguém igual! Ele próprio: Ermenildo, o pavão gótico.