Héctor

por Clara Maas

Héctor esteve doente por uma semana. Meu luto durou por três.

Tudo ao meu redor era frígido, assim que as bolinhas vermelhas fizeram traços em zigue-zague em suas costas pálidas, construindo um caminho até seu rostinho permanentemente corado, que agora fervia por debaixo da ponta dos meus dedos. Veio o meu pavor dos outros dias, quando o médico de mãos trêmulas e cenho franzido, que jamais me traria boas notícias, relatou que aqueles pontinhos rubros exigiam uma distância constante, e que dali em diante, eu não poderia fazer tanto quanto respirar na sua presença, ou segurá-lo em meus braços durante seus pesadelos febris. Teria que assistir de longe ele desaparecer diante dos meus olhos, com meu adeus sendo apenas um sussurro enquanto desejava sair em grito.

Ele foi enterrado às pressas, como se tivessem medo que a doença se espalhasse, mesmo que fosse debaixo da terra. Me sugeriram que queimasse o corpo, assim como fizeram com as colchas e lençóis em que ele dormira. Mas isso não faria dele um objeto contaminado como o resto? Aquilo eu nunca poderia suportar. Para mim era ridículo, aquele medo de alguém tão minúsculo, tão indefeso, inofensivo. Era terrível pensar que, para eles, aquele corpinho de alma esvaída pudesse ter mantido algum mal.

Depois de tudo, talvez na única maneira de manter minha sanidade, eu retomei meus passeios à tarde pela praia. Tentava executá-lo exatamente como fazíamos antes, porém os passos saltitantes, a correria em volta da costa do mar claro, davam lugar a algo semelhante a um rastejo. Minhas pernas se moviam com dificuldade, pesadas para trás ou ao lados, nunca para frente.

Até que me deparei com ele.

Ali de costas na areia, coberto pelos grãos e pela brisa. Seus olhos estavam fechados, os cabelos meio úmidos faziam caracóis em sua testa lúrida e fria, suas veias finas e lilases traçavam seu rosto até a garganta, e ali da onde seus últimos gritos haviam escapado, elas se concentravam mais. Eu o peguei no colo, a criatura translúcida. Ele e Héctor eram parecidos do jeito que só um cadáver infantil poderia ser, pequeno o suficiente para caber em meus braços, mas pesado demais para carregar, com os membros que pendiam do corpo quando o levantava, e se recusavam a descansar sobre seu torso. O carreguei para uma gruta próxima, cercada de rochas para eu lhe fazer um leito. E assim que o deitei ali, eu chorei. Chorei por quem não poderia se debruçar em seu corpo como eu fazia ali. Chorei pelo o que não pude fazer antes, pelo último abraço que não pude dar. Chorei por poder me despedir do filho de outro alguém, não do meu próprio.

Acabadas minhas lágrimas, me levantei em direção a boca da caverna. Mas ao chegar lá, meus pés se prenderam ao chão e eu não me movia mais. Me senti subitamente abalada, e me segurei nas pedras para retomar o equilíbrio, mas algo me era estranho. Por um instante o ar a minha volta parecia estático, o mundo pesado demais para eu me manter estável. E durante esse silêncio ensurdecedor, a presença atrás de mim se tornava mais evidente, como se eu fosse capaz de ouvir cada movimento, cada estalo dos seus ossos, de sua juntas, do sangue que voltava a correr pelas suas veias, e de sua mandíbula que se abriu com dificuldade para dizer:

“Quem é você?”

Meu corpo que até agora se mantinha rígido no mesmo lugar fora destravado, e me deparei com ele. O menino agora estava sentado de costas eretas na rocha, o punho cerrado predestinando, talvez, uma espécie de medo.

“Você é minha mãe?”

Seus olhos estavam atentos e, só então eu notei, verdes como se parte do mar que lhe engolira agora fizesse parte de seu sistema.

Eu não respirava mais. Não, minha respiração escapava de mim em forma de soluços, minhas mãos tremiam em tentativa de contê-los. Sua voz estranha se tornava um ruído abafado para os meus ouvidos dormentes. Ele continuava suas perguntas, mas eu já não ouvia mais.

Era ele. Ele havia voltado para mim. Claro que não era ele, não de verdade, eu sabia. Mas aquela visão, como um sinal, divino, que seja. Mas ele havia retornado de qualquer forma! Eu poderia levá-lo de volta para casa, seus móveis antigos já haviam sido queimados então não haveria problema algum. Poderíamos começar de novo, ou melhor! Poderíamos continuar exatamente da onde paramos.

Mas enquanto eu me aproximava do menino, maravilhada demais para raciocinar meus movimentos, algo me parou. Eu o olhei novamente, dessa vez sem a sombra do antigo filho.  Esse menino que levei da praia, estava morto há pouco, e trazia consigo as mesmas características de antes. O rosto pálido, a pele translúcida, as veias saltadas, a boca azul. Então eu me toquei que ele não estava realmente vivo, mas que se tratava de um morto que agia como tal. Ou um vivo com aparência de defunto. Tão pouco vivo, tão pouco morto, talvez algo entre os dois.

Jamais poderia trazê-lo para casa, não com aquela aparência. Como poderia eu criar uma criança morta, se nem sequer consegui manter uma viva? Ele falou de novo, os olhos ainda fixos em mim:

“Qual é meu nome?”

E eu respondi, com a voz pesada de um certo arrependimento, mas sabendo que mais nada caberia àquela situação:

“Héctor.”
————————
Os próximos momentos passaram em um silêncio quase constrangedor, mas ele não parecia se importar. Continuava me encarando com seus olhos arregalados, mas não dizia mais nada. Talvez em êxtase do nome novo, e com ele alguma forma de existência de volta. Eu já havia decidido no silêncio do meu consciente que não haveria maneira de deixá-lo na caverna, abandonado ao vento. Eu poderia criá-lo, mas teria que ser naquele esconderijo escuro. Quebrei o silêncio e expliquei rapidamente que teria de sair mas voltaria logo, não se preocupe. Porém ao fazer menção a boca da caverna, o sol se pondo a minha frente, senti pequenas mãos frias esparramadas, que se agarravam ao meus tornozelos em um punho de aço.

“Fica comigo?” Disse ele largado aos meus pés, as pontas dos dedos roxas por uma força que ele nem sequer deveria possuir.

E assim, com piedade nascida daquele desespero infantil da solidão, houve uma tentativa de assegurá-lo de que não o abandonaria: as Promessas.

“Vejamos: Eu volto amanhã... se, e apenas se, você trouxer para mim as dez das conchas mais belas de toda a praia.”

Na manhã seguinte lá estavam elas, separadas e polidas com cuidado em cima das rochas, brilhantes e únicas, escolhidas a dedo.

Se iniciaram com coisas fúteis, claro. Brincadeiras frívolas para o manter ocupado enquanto estava fora, o suficiente para que não saísse para me procurar, ou para me assegurar que naquele meio tempo ele não desistiria de existir e voltaria a ser imóvel, Afinal, tinha uma tarefa a cumprir. Eu volto se você me trouxer 20 pedregulhos, as frutas que encontrar nas árvores, as flores que nascem na terra. Todas as vezes ele se dedicava ao serviço, e todas as vezes ele o cumpria, só para ter a certeza de que eu retornaria.

Mas me incomodava imaginá-lo sozinho durante a noite toda, em um lugar tão escuro e frio. Na praia havia algumas dezenas de gatos, que passeavam à beira mar, na tentativa de caçar algum peixe da maré. Então fiz a próxima promessa:

“Eu volto, se você convencer algum deles a te fazer companhia", indicando um deles com a cabeça.

Na manhã seguinte, trazia um pouco de peixe para o possível filhote que ele escolhesse, já que Héctor não demonstrava interesse por nenhuma das comidas que eu lhe oferecia.

Havia manchas estranhas na areia, uma espécie de marrom que fora remexido várias vezes, na tentativa de fazê-lo sumir.

Na gruta, ele sentava cabisbaixo, e apenas se levantou quando me viu entrar. Estava coberto de sangue. Do rosto à ponta dos pés, as roupas completamente manchadas.

Eu corri em sua direção e me abaixei a sua altura, segurando pelos seus braços e apalpando-o afim de achar da onde vinha todo o sangue, onde havia se machucado, enquanto perguntava histérica, o que havia acontecido.

“Eles não quiseram ficar comigo.”

Parei de procurar por machucados, a realização caindo sobre mim de súbito. Perguntei, mesmo já sabendo a resposta: eles quem? “Os gatos. Eles não quiseram ficar aqui comigo.”
————————
A partir daí nada mais foi o mesmo. Uma distância invisível cresceu entre nós, enquanto ele tentava imaginar que ela não existia, ao implorar que eu não o deixasse, como sempre fazia. Eu mudei as promessas, as metamorfoseei para coisas incertas e impossíveis, para que assim eu tivesse uma razão pro meu desconforto crescente. Eu volto, se você me trouxer vinte peixes do mar, eu volto se amanhã houver uma tempestade, eu volto se amanhã as ondas quebrarem apenas 30 vezes na praia. Não adiantava, ele conseguia concluir todos os desafios, fazer com que tudo funcionasse ao seu favor. Ainda que devesse ser inalcançável, ou sobre-humano. Talvez fizesse sentido, claro, ele não era completamente humano.

Quando as minhas tentativas falhas de escape se tornaram insuportáveis, cheguei a conclusão que ser sincera com ele me salvaria do mesmo destino que os felinos.

“Eu não posso mais fazer isso. Eu não posso mais vir aqui te visitar”

Ele se manteve de costas para mim, e as conchas que segurava escaparam das suas mãos ao encontro do chão. Ele havia decidido algumas semanas atrás que as penduraria na parede, para que a caverna não fosse tão assustadora no escuro.

“E porque não?

“Porque você não é o meu Héctor.”

Agora ele estava virado para mim, seu rosto estampado de dúvida, as sobrancelhas juntas.

“Seu?”

“Sim. Meu filho.”

A dobra em sua testa aumentou, e em movimentos lentos, ele direcionou o polegar direito à sua caixa torácica.

“Não, não você.”

“Então existe outro Héctor?”

“Na verdade, você é o outro Héctor. Você chegou depois.”

“E onde está ele agora?”

“Ele se foi. Ele...”

“Mas eu ainda estou aqui.”

“Vocês são diferentes...”

“Não importa. Eu estou aqui e ele não. Por que você não pode ficar comigo se ele não existe mais?”

“Importa sim! Meu Héctor não se parecia com você, meu Héctor não possuía essa aparência, essa pele, esses olhos. Meu Héctor não está...” Vivo? Morto? O que quer que fosse o menino à minha frente? “Ele não era uma aberração.”

Ele não me interrompeu mais. Aliás, ele não falou mais nada. Só me encarava de forma que eu nunca o havia visto fazer antes, como se guardasse um choro tão alto e odiável que poderia demolir toda a estrutura da gruta. Mas eu não tinha mais medo dele, ou de sua carência violenta. E a cada minuto que eu passava na caverna, ele me parecia mais com uma criança mimada.

“Você não consegue tudo que quer? Você não implora tanto para que eu fique aqui? Certo. Então traga o meu verdadeiro Héctor de volta.”

Eu falei como uma ameaça. Como prova de que eu não voltaria mais. Porque mesmo que o menino se achasse invencível, aquilo ultrapassava tudo de que era capaz.

————————

Eu não voltei para a praia por algumas semanas. Parte de mim temia que talvez ele viesse até minha casa, me procurasse por toda cidade. Mas eu esperava que com a minha ausência, não existisse mais motivo para que aquela carcaça continuasse a persistir, e ele por fim pereceria sozinho.

Uma manhã, fui despertada por pequenos ruídos pela cidade. Algo semelhante a sussurros, sobressaltos em sincronia de terror que demora a se ajustar. Ao olhar pela minha janela, do topo de minha casa, reconheci um cabelo castanho em redemoinho, que eu esperava jamais encontrar novamente.

Desci as escadas em tropeços, correndo mais do que meus pés aguentavam. Escancarei a porta de frente, me deparando com ele de repente.

A primeira coisa que chamou minha atenção foi a terra. Lama por toda a sua roupa, e debaixo das unhas que haviam sobrado. A pele não lhe cabia direito, ameaçando rasgar na ponta dos dedos, onde o traje estava apertado. Afinal, aquele Hector era mais alto do que o meu. Seu rosto também estava sujo, mas não era apenas isso que complementava sua desfiguração. Suas pálpebras haviam sido esticadas forçadamente, para que houvesse mais espaço para a criatura por baixo da máscara. Seus olhos verdes transpareciam. Felizmente ele não havia roubado seus olhos também.

Nós nos encaramos por um longo instante, como da primeira vez que nos encontramos. E mais uma vez, ele foi o primeiro a falar. Ele abriu a boca devagar, como se ainda estivesse se acostumando ao corpo novo de estatura menor. Por detrás de seus lábios havia o dobro dos dentes do que normal, que silabaram lentamente:

“E agora? Você fica comigo?”