A Entidade

por Victor Martins

— Eu tô falando que eu vi a Loira do banheiro, é sério. - falou a menina de sete anos, sentada no banco de trás do carro.

A irmã mais velha, olhando-a com a mesma fascinação de quando se vê alguém muito inteligente, ou muito idiota, perguntou; mal conseguindo segurar a risada:

— E como ela era?

A mais nova, ainda meio apavorada e com as lágrimas já secas no rosto, respondeu com toda a sinceridade de uma criança de sete anos:

— Ué, ela era loira.

A de quinze anos não se aguentou e gargalhou. A mãe, que estava absorta conduzindo o veículo, disfarçou um sorriso. Não importava a idade – seja sete ou cem – as pessoas sempre querem alguém que as leve a sério e que acredite em suas histórias; não importa o quão absurdas elas eram, e era esse um dos papéis de uma mãe: levar a sério.

— M-Ã-E! - berrou a criança. Abrindo a boca do tamanho de uma de um túnel, e as lágrimas voltaram a cair, só que dessa vez eram de raiva, não de medo – A Mayara tá mexendo comigo! Ela... ela... - As palavras se afogaram na garganta.

A mulher, enquanto freava bruscamente, por conta de uma moto que entrou de repente no caminho, pediu para Mayara:

— Pode parar de rir da sua irmã? - O cansaço era marcante em sua voz. A filha mais velha se ajeitou no banco e contraiu os lábios, forçando o riso para dentro. Estava vermelha. – Mayara, não estou achando graça nisso – Os olhos de ambas se encontraram no retrovisor. Na hora, a adolescente soube quem dava as ordens e quem as obedecia – Quer ouvir uma música, Bianca, querida?

O choro cessou. Um sorrisinho, sem um dentinho da frente, brilhou.

— Sim! Sim! - Bianca pulou sentada e esticou o seu braço o máximo que pôde.

— Lá vem... - reclamou Mayara, com a cara fechada. Em seguida, encostou a sua cabeça no vidro da janela. Observou a cinzenta e desinteressante paisagem de São Paulo. Ia chover.

— Meu Deus, menina! Ou você muda esse seu gênio, ou então a gente vai conversar bem sério lá em casa. E eu falo sério.

— Mãe, mãe. - Bianca interrompeu – Já sei o que eu quero escutar. Eu quero que põe Baby
Shark.

— Caralho – sussurrou Mayara para si. Gelou, por um instante, pois temeu que a mãe tivesse escutado. Ela era completamente contra qualquer tipo de palavra de baixou calão. Se a irmãzinha tivesse escutado, para ela, não seria nada, a não ser algo sem sentido.

— Eu ganhei! - comemorava Bianca – A música que eu escolhi tá tocando. Lá-Lá-Lá – Mostrou
a língua para Mayara – A minha irmã é.. é uma pateta.

Mayara fez carinho na cabeça de Bianca. Era bom vê-la feliz. Adorava aquela criança. Por mais que Bianca estivesse estado inteiramente apavorada há alguns minutos, agora estava alegre como nunca. Para Mayara isso era uma espécie de superpoder que as crianças e pessoas felizes tinham: elas esqueciam as coisas ruins depressa.

O caminho de volta foi longo, mas agradável. As duas mais velhas no carro se esforçaram ao máximo para arrancar gargalhadas da mais nova. Cantavam com ela. Faziam cócegas. Só não faziam mais, porque não podiam.

O gato da família, Manchinha, estava esperando elas chegarem deitado e enrolado em cima de uma cadeira, a qual, há quase uma hora bateu um sol gostoso e aconchegante. O rabo castanho sem vida, pendente, quase tocando o piso branco.

De repente um clarão intenso e um estrondo forte. O gato acordou assustado. Pingos de chuva começaram a bater, abafadamente, no vidro da janela ao lado. Pareciam pequenas pedrinhas estralando na superfície.

A porta se abriu com velocidade. As meninas entraram apressadas. Já a mãe se certificou de trancar bem o portão. Não era um bairro perigoso, mas era sempre bom ficar esperta. Olhou atentamente as plantas que ficavam, cuidadosa e ilustremente, posicionados no quintal. Tudo estava em ordem. Entrou.

Bianca brincava com Manchinha. Ele passava por entre as pernas da menina com o rabo levantado.

— Já lavou as mãos? - perguntou a mãe. Bianca negou com a cabeça enquanto tentava puxar a cauda do animal – Então é melhor lavar. Brinque com ele depois.

— Você vem comigo, Manchinha? - O gato miou – Vamos logo! - Ela o pegou no colo de forma carinhosa. Subiu as escadas correndo.

Para mãe era intrigante a maneira pela qual o gato e Bianca pareciam se entender. Quando ela estava triste; ele ia vê-la, mesmo a menina estando com a porta do quarto fechada. Ele simplesmente aparecia. Ficava arranhando a porta até que fosse aberta. E tinham aqueles miados, que a filha entendia, ou fingia entender muito bem. Ou talvez eu só esteja cansada de tanto trabalho, pensou a mãe.

Pendurou a máscara no ganchinho, que ficava no canto da sala. A pandemia já tinha acabado. Mas era bom manter as máscaras por perto, só por precaução.

Foi até seu escritório, que tinha feito de improviso; usando um dos quartos de hóspede, no andar de cima. Não tinha desligado o computador, apenas o deixava com a tela suspensa quando ia buscar as filhas na escola. Por mais que elas morassem a menos de meia hora da escola, a mãe insistia em ir buscá-las. Abriu o aplicativo de computador, o qual mostrava todos as consultas que ela teria que realizar naquele dia – pelo menos no restante dele. Nunca pensara que exercer a psicologia on-line seria tão rentável e ao mesmo tampo mais acessível aos bolsos dos clientes. Obviamente, mantinha seu consultório, em uma rua chique, funcionando. Os tempos de pandemia foram desafiadores, e ela os venceu com esmero. Era assim que um mãe que criava as filhas sozinha tinha que ser. Mas estava cansada, estava mesmo. Quanto tempo que não tirava férias? Por quanto tempo ouvia e ouvia os outros, mas não ouvia a si mesma? As filhas crescendo; e ela apenas ouvindo e ouvindo os outros, sem tempo para elas.

Perdão Mayara, querida, pra falar comigo tem que agendar horário. Sim, agendamos também pelo telefone, claro.

A próxima consulta seria só às sete horas. O relógio no canto da tela marcava seis e dez. Esfregou os olhos. De repente, na sala escura, debilmente iluminada pelo computador, ela viu algo se mover na prateleira de livros. Arregalou os olhos. E, então, ouviu o miado de Manchinha e em seguido os seus olhos amarelos, parecendo duas bolas flutuando na escuridão.

Ela tinha certeza que tinha fechado a porta. E estava certa, ela permanecia fechada. Mas como aquele gato entrou ali?, ela pensou. E só de fazê-lo a mente pediu descanso. Tanto faz como entrou, mas tinha que sair. Ela abriu a porta:

— Xispa daqui, Manchinha – ele disse, batendo um pé. Manchinha passou parecendo rebolar e se esfregou nela.

— Ai está você, Manchinha! - empolgou-se Bianca – Seu gato maluco – ela o advertiu – Você sabe que não pode entrar no escritório da mamãe.

A mulher foi até a prateleira ver se Manchinha a tinha atrapalhado. Ele arranhou um pouco a madeira. Um vento gelado, repentino, fez a cortina dançar. A temperatura ia cair bastante. Ela se apressou para fechar a janela. A vista da janela dava para o portão e para o quintal florido. Mas não foi apenas isso que ela enxergou; havia algo estranho nas sombras lá fora, os galhos das árvores se contorciam em figuras bizarras e assustadoras. As sombras se comportavam como se algo – muito ruim – se escondesse nelas. A mulher sentiu os cabelos das costas e dos braços se arrepiarem. Ela quase conseguia enxergar a maldade a encarando nas sombras – e sorrindo; sorrindo muito, os dentes sujos de sangue fresco e afiados, prontos para...

Fechou a janela calmamente.

No segundo seguinte, todo o medo que ela sentiu passou a ser segundo plano em sua mente. O cérebro voltou a ser mais racional. Aos poucos foi se esquecendo. O vento frio assobiava lá fora. Não tinha ninguém na rua. Voltou a chover. Os trovões pareciam gritar em tormento.

A janta estava servida.

Era realmente difícil fazer Bianca se desgrudar de Manchinha, até mesmo na mesa de jantar. O gato ficava no colo dela miando e, fez ou outra, ameaçava subir na mesa. O silêncio reinava à mesa.

Elas já tinham conversado sobre as banalidades do dia a dia. Porém, as conversar raramente evoluíam para algo além disso.

— Mãe – falou Mayara –, podemos conversar? Eu...

A mãe, que naquele exato instante terminou de comer, se levantou:

— Agora não posso, filha. Talvez outra hora – Ela checou a hora no celular – Tenho que trabalhar agora – E subindo as escadas, ela pediu – Por favor, Mayara, você pode lavar a louça?

— Claro – a menina respondeu chateada. Duvidou que a mãe tivesse ouvido, pois já estava lá em cima. As coisas eram sempre iguais quando ela queria falar com a mãe. Isso era tão... tão frustrante. Encarando a irmã brincar com Manchinha, ela pensou, que somente ela não tinha algo de um valor emocional; algo que a fizesse feliz. Era tudo mais do mesmo. Sentiu que ia chorar. E não teria ninguém que secaria as suas lágrimas. Reprimiu o choro e a tristeza. Tinha que ser feliz – Ei, Bianca – A criança tirou os olhos do gato – quer me ajudar com a louça? Eu lavo e você seca, pode ser?

Bianca estava em cima de banquinho para que pudesse pegar as louças e secá-las. Enquanto trabalhava, cantarolava uma música. Quando terminaram tudo, Mayara quase derrubou os pratos por ter quase pisado em Manchinha sem querer.

—  Bianca pode tirar esse gato daqui?

— Ele está com medo – disse a menina, a sua voz transmitiu uma seriedade esmagadora.

— Medo? Medo de quê?

— Ele também vê coisas. - Mais uma vez o tom de voz era implacável.

Mayara se virou. Bianca que, apesar da pouca altura, se impôs mais do que qualquer adulto, parecia ter se tornado uma gingante. O cenho franzido, os braços juntinhos ao corpo. 

A cena toda, apesar da seriedade que tenuemente incomodava, era cômica. Aos olhos da mais velha a irmã somente queria chamar a atenção, ou ainda se mantinha em algum tipo de brincadeira. Não duvidava que Bianca tinha visto alguma coisa mais cedo na escola; algo que a assustara de verdade, mas desacreditava que fosse a Loira do Banheiro. Sabia que crianças viam um agasalho pendurado no cabide, por exemplo, e seus olhos as enganavam dizendo que era uma criatura assustadora. Então, Bianca só estava ainda nesse frenesi de enxergar coisas que, na verdade, eram falsas. E tudo bem, ela era apenas uma criança.

Mayara estava deitada em sua cama – Bianca ganhara, por insistência, o direito de dormir com a mãe. Já fazia algumas horas que a mãe passara para dar boa-noite. Os olhos, já acostumados a passar horas descendo o feed do Instagram, quase caiam de sono. O quarto um breu só. De repente, o sono ficou insuportável. Ela ainda teria que ir à escola dali a poucas horas. Ajeitando-se de qualquer maneira na cama, ela adormeceu menos de um minuto depois.

Teve sonhos esquisitos, que pareciam ser complexos e assustadores, porém passaram tão rápido que foi impossível da mente registrá-los. Apenas deixavam uma sensação desconfortável. Aos poucos um barulho invadiu esse universo de sonhos líquidos. Mayara demorou para perceber que tinha acordado, ainda estava meio dormindo. Entretanto, o seu cérebro percebeu, na única migalha de racionalidade que restava, que aquele barulho não era de ninguém da casa, pois ainda estava de noite e, o que lhe deu mais medo, o barulho vinha de dentro de seu quarto.

Os seus olhos se arregalaram de medo. Um calafrio lhe desceu a espinha, fazendo a medula gelar. Apoiou-se nos cotovelos e, totalmente despertada, olhou ao redor. Apenas trevas. Eram tão profundas que pareciam ter sugado a menina para o desconhecido. O barulho vinha do banheiro contíguo ao quarto. Parecia que alguém arranhava alguma coisa lá dentro. O som não era alto, mas tão baixo que se registrava de maneira apavorante em sua mente.

Subitamente ela lembrou do que a irmã falara: Ele está com medo; ele também vê coisas. E, naquele instante, não duvidou de que fosse tudo verdade. A cama estralou sob o peso da menina.

O barulho parou.

Só restou o silêncio infernal.

Então... então, ela pôde jurar que viu uma cabeça, não uma de gente, aparecer no umbral da porta; apenas a silhueta macabra.

Aquilo fez todo o senso que ela tinha sobre o real e o irreal desmoronar. Agora até a porra da mula sem cabeça podia ser real.

Ela estava paralisada. Teria gritado se ao menos conseguisse. Mas não tinha palavra ou som que correspondesse ao horror que estava diante de seus olhos.

Fechou os olhos com força. E disse a única coisa que veio a sua mente:

— Pai Nosso que estais no céu... - tremia – É só um sonho! Santificado seja... seja...

O colchão balançou um pouco. Seja lá o que fosse aquilo estava junto a ela, sentado na cama. Os dedos gelados e com toque de morte se fecharam sobre o tornozelo dela.

E nessa hora o grito, que estava preso na sua garganta, saiu.

No instante seguinte, a luz acendeu. Era a mãe. Ela se deparou com o quarto vazio, exceto pela sua filha.

Mayara desesperada gritava:

— Me solta! Me solta!

A mãe segurou os braços da filha, que se contorcia.

— Não tem nada aqui – A mãe tentou se fazer entender por entre o desespero. Segurou os pulsos da filha com mais força, que ela até duvidava que tinha. - Mayara abra os olhos! Sou só eu, filha.

Temia que Bianca visse aquela cena. A menina aparecera de repente em sua mente. A mãe se sentiu culpada, porque, por mais que esse pensamento tivesse um fundo de razão, ela tinha que ajudar Mayara. Ela só tinha quinze anos, e, quase sempre, lhe eram atribuídas uma maturidade que, a mãe duvidava, que até mesmo um adulto teria. Não a via como ela tinha que ser vista. Não a via com alguém que pudesse chorar e quando o fizesse teria alguém para consolá-la.

Aos poucos, o pânico e inquietude de Mayara foram diminuindo. Aos prantos, ela contou a mãe o que tinha acontecido. A mãe escutou tudo, porém se sentia distante de tudo aquilo. Queria estar cem por cento ali com a filha, mas não conseguia. A cabeça viajava entre as responsabilidades adultas e o sentimento de que o seu melhor não era o bastante. Mayara terminou de contar tudo.

— Deve ter sido algum tipo de paralisia do sono – disse a mãe, buscando pela lógica que os livros lhe deram.

Mayara apenas negou com a cabeça. Não, não era.

A mãe levantou-se e com toda a descrença e foi até o banheiro, onde Mayara dizia ter saído a coisa que a assustara.

Estava tudo nos conformes lá dentro. A mãe se preparava para sair e dizer que não encontrou nada; quando algo, bem acima do vaso sanitário, chamou a atenção dela. Eram arranhões, bem finos e perturbadores. De algo em tormento eterno.

“Pode ter sido o Manchinha” Não, era impossível. Os arranhões não eram inocentes, como os de um gato; eles tinham a malícia de algo ruim. “Talvez a própria Mayara, em um episódio de sonambulismo, tenha feito isso.” Mas mesmo se arranhasse o azulejo a vida inteira, demoraria para deixá-los marcados, e as unhas dela, com certeza, se quebrariam e os dedos sangrariam.

— Não tem nada aqui – disse a mãe, do banheiro. Ao sair trancou a porta – Acho que você vai se sentir melhor assim, não é? - A filha afirmou com a cabeça - Agora tenta dormir está tudo seguro. Não tem nada lá. - A mãe dizia, mas, dentro de si, sentia medo.

Abraçou a filha antes de sair do quarto.

— Boa noite, querida. Qualquer coisa, é só me chamar. Vou deixar a porta aberta.

Mayara caiu no sono, mas a mãe, não.

As filhas, no início das férias de Julho, foram passar uma semana na casa do pai. A mãe concordara com isso, pois seria excelente para elas saírem de casa um pouco. E já fazia tempo desde que não iam à casa do pai; meramente, por uma questão de que a escola era mais próxima da casa da mãe. O homem adorava as filhas, e elas o adoravam o dobro. O problema para não viverem juntos estava, exclusivamente na antiga e desgastada relação do casal. Ciúmes de ambas as partes. Gritavam um com o outro como se tivessem a idade de Bianca. Não tinham confiança mutua.

Foi uma luta para convencer Bianca a deixar Manchinha para trás. Ela apenas aceitou quando a mãe prometeu que cuidaria muito dele; teve que jurar de dedo mindinho.

Ela aproveitou que as filhas estavam fora e abriu horários a mais em seu consultório. Pelas suas contas, se trabalhasse mais conseguiria ficar duas semanas com as filhas sem se preocupar. Seria o momento família que todas precisavam tanto.

Chegou em casa perto das onze da noite. Estava completamente destruída e cansada. Pensou nas filhas. Será que elas estão se divertindo? Tinha mandado mensagem para Mayara, mas ela não respondera. Tomou banho preocupada; pois tinha medo de ficar sozinha em casa, achava-se uma presa fácil para bandidos. Porém, a verdadeira fonte dessa preocupação era a filha mais velha. Ela não era mais a mesma desde o que acontecera no quarto dela. A menina se tornara mais distante. A voz mais para dentro, com vergonha de sair da garganta; estava sempre assustada e com os olhos arregalados. A mãe decidiu dar espaço a filha e analisar como ela reagiria a isso a um prazo maior. Sabia que com o tempo ela esqueceria tudo. Caso contrário, elas buscariam ajuda. Embora, outra parte da mãe, dizia que a ajuda já estava atrasada.

Ela pisou no tapete que ficava do lado de fora do box. Secou os pés.

A sua mente estava confusa. Ela tendia a ignorar os arranhões que vira aquela noite. Mas eles estavam sempre lá, invadindo a mente, como penetras. A filha nunca os viu. Por vontade própria começara a usar os outros banheiros da casa.

Esses malditos arranhões eram de verdade. Tinha algo acontecendo ali. Se ela fosse até o cômodo, os veria. Nítidos e assustadores.

Tinha que ser racional, duas vidas dependiam dela. Tudo tinha uma explicação lógica. Tinha que ter.

As refeições daquela semana a sós, em especial, a daquele dia, tinham um quê a mais de solidão. Era como se todas as oportunidades que ela perdera de estar com as filhas se sentassem à mesa com ela e riam muito. Era a sensação de que, um dia, as filhas realmente não estariam mais ali, pois tinham as vidas delas para viver, e ela não tinha sido mãe; nenhum dia sequer.

Chorou.

De repente, como uma ideia que surge do nada, ela se perguntou: onde está o gato? Não o tinha visto desde que chegou.

— Manchinha?! - ela chamou. Nem sinal dele. Andou pelo corredor com a camisola no corpo. Chamou-o mais uma vez. O primeiro andar em silêncio total. Começou a subir as escadas – Parabéns, você é a melhor mãe do ano – Bianca ficaria devastada se algo acontecesse a esse gato.

A mãe imaginou que ele teria saído enquanto ela guardava o carro. Ela, então, vestiu uma jaqueta, por cima da camisola e saiu para a noite fria.

Com a ajuda da lanterna do celular, ela procurou por todo o quarteirão, porém não encontrou nada. Talvez ele já estivesse longe demais. Talvez tinha sido atropelado. Talvez alguém o tenha pegado.

Não, não, tinha que ser lógica. Ele ter saído pelo portão era impossível. Ela teria visto. E o portão nem ficou aberto por tanto tempo assim. O mais provável é que ele esteja no quintal.

Imaginou que um vaso pesado caíra sobre ele, enquanto ela trabalhava, ou coisa pior. Tremendo de frio, ela voltou para a casa. Antes que ela pudesse trancar o portão, algo chamou a sua atenção. Havia pequenas manchas escuras na trilha de tijolos, que levava até a porta principal. Usou, mais uma vez, a lanterna do celular; as luzes dos postes da rua eram fracas.

Era sangue fresco.

— Aqui, Manchinha – ela o chamou, sozinha no quintal escuro e frio.

Uma gota de suor lhe escorreu pelas costas. Começou a seguir a trilha de sangue. A cada passo que dava, criava uma desculpa diferente que daria a Bianca pelo que aconteceu com o gato. E, em todas, sabia que a menina não a perdoaria.

“Talvez não seja nada grave”, ela pensou.

Tinha sangue, fresco e velho e as pegadas de Manchinha por todo o lugar. Parecia que tinha acontecido um massacre ali.

— Manchinha! - ela tentou gritar, mas apenas conseguiu emitir um som fraco e medroso.

Então ele miou, de algum ponto a frente, passando pelo chão sangrento. Ela mirou a lanterna em direção ao som, assustada.

O gato estava sentado, todo sujo de sangue e, ao seu redor, várias carcaças de pássaros. Manchinha veio rebolando até ela, lambendo as patas.

A mulher, sentindo nojo e estava prestes a vomitar. Tentou chutar ele para longe, em um gesto espontâneo de medo e repudia. Acima de tudo não queria aquilo perto de suas filhas. O gato fugiu antes que lhe agredissem. Ele fisgou com a boca um dos pássaros. E, enquanto a mulher se aproximava, ele miou aterrorizado e fugiu, como se tivesse visto atrás dela, algo horripilante. O portão (que ela tinha certeza que trancara) bateu. As dobradiças enferrujadas rangiam. O alarme do carro disparou. As árvores ao redor pareciam rir com o vento.

A respiração dela ficou entrecortada. Os pássaros com os pescoços mutilados pareciam encará-la. Ela tinha certeza que acabaria como eles. Algo pior que Manchinha a atacaria; talvez fosse a mesma coisa que Mayara viu. O portão batia lentamente. Uma vez e depois outra.

Ela pegou a chave do carro que estava no bolso de sua jaqueta e desligou o alarme do veículo. De longe, ela percebeu que havia duas pessoas sentadas no banco de trás. O coração dela parou na hora. E o tempo deixou de existir.

Eram as suas filhas. Estavam mortas. Parecia que estavam ali por dias.

— Mayara! Bianca! - Ela correu em direção à janela. Socou-a para ver se as meninas acordavam. Parte dela sabia que aquilo era algum tipo de sonho e que as meninas estavam na casa do pai, porém o horror era real demais.

Manchinha passou se esfregando em sua perna, sujo de sangue. A camisola branca ficou vermelha. E, então, a mulher sentiu uma raiva tão grande. Era como se a bomba relógio que ela era, tinha estourado. E seria bem em cima daquele gato assassino de merda.

— Mãe! - choramingava Bianca – Como assim o Manchinha fugiu?!

As filhas tinham acabado de chegar. Mayara estava em seu quarto desfazendo a mala.

— Não sei o que aconteceu filha – Ela se abaixou para olhar Bianca nos olhos – Deve ter encontrado um jeito de subir o muro. Tenho certeza de que se ele fugiu não foi pelo portão.

— M-mas você procurou ele? - A lágrima escorrendo.

— Sim, filha, procurei. Podemos ir juntas se você quiser. - A mãe se levantou – Ei não fica assim, vamos encontrá-lo. Sei que vamos.

Bianca abraçou a mãe.

Mayara só tinha uma certeza: a sua mãe estava estranha. Era como se outra pessoa tivesse tomado o lugar dela. Tipo um clone, que nem naqueles filmes de ficção científica antigos. Mayara estava no banheiro, guardando algumas coisas que levara para a casa do pai. O cômodo ainda trazia más lembranças para ela, mas era como se até essas más lembranças tivessem se personificado em sua mãe.

Ela se assustou quando alguém bateu à porta do quarto. Era ela.

— Vou pedir comida, amor, alguma coisa que queira?

— Não, o que você pedir tá bom pra mim – Só queria que ela saísse dali – Papai me mimou muito esses dias. Sabe como ele é, né?

— Sei, claro – Se sabe então por que não vai embora?, Mayara pensou – Senti muito a sua falta, querida. Venha me dar um abraço.

Antes que menina tivesse escolha, a mãe abraçou-a. Foi um gesto frio e vazio, a menina sabia. Era como se ela quisesse compensar por algo ruim. Pensando bem, era isso o que mais estava diferente na mãe, ela agia como se tivesse feito algo horrível. Os olhos dela tinham perdido o brilho.

— Está tudo bem, mãe?

Nesse instante, a mãe a abraçou mais forte. Não por estar emocionada, mas pareceu ser para machucá-la por um momento, como se ela tivesse dito algo errado.

— Claro que sim. Por que não estaria? - então ela sorriu o sorriso mais falso que Mayara já tinha visto até então.

A menina apenas deu de ombros. Devia ser alguma coisa no trabalho que a tinha aborrecido. Alguma coisa que alguém da idade de Mayara não entenderia. Mas no fundo sabia que a mãe era como um iceberg, a sua maior parte era mistério e invisível aos olhos. E a camada que era possível ser enxergada era superficial.

— Venho te chamar quando a comida chegar – E saiu.

Os dias que se passaram foram estranhos. Bianca chorando por querer seu gato de volta; a mãe misteriosa, andando pela casa falando sozinha; Mayara em seu quarto, apenas tentando ajudar a irmãzinha. Elas, então, imprimiram alguns cartazes prometendo recompensa se alguém achasse o gato desaparecido.

Num dia de semana qualquer, a mãe apareceu, vinda direto do trabalho, atômica, dizendo que sabia onde o gato estava.

— Recebi uma ligação no trabalho. Um homem viu Manchinha e está com ele.

Bianca pulava de empolgação.

— Vamos logo, vamos logo! - disse a pequena, puxando a irmã consigo.

— Calma, Bianca, não vamos pegar o gato se a gente cair da escada – tentou parecer bem-humorada, mas falhou. Só estava indo porque queria ver a irmã feliz, e não por conta dela quer roubara o lugar de sua mãe. Sinceramente duvidava que haveria algum gato no fim disso tudo.

As três entraram no carro.

— Estão todas com os cintos aí atrás? - perguntou a mãe, ligando o carro. As filhas assentiram –Ótimo! Vou levar vocês para onde está o Manchinha.