Melhor economizar a belezura

por Vinícius Silva Souza

Por anos o Leandro disse que queria comprar uma moto. Primeiro dizia que queria tirar habilitação de moto. Então dedicou tempo e dinheiro -até mais do que tinha - para conseguir a bendita da habilitação. Passou de primeira -claro que sim, era um rapaz dedicado, estava determinado a conseguir isso. Dizia que a moto ia resolver tudo. Não ia mais ficar plantado em ponto de ônibus, pleno domingo à tarde, voltando da casa da Mariana; não precisaria mais ficar checando o uber o tempo todo na esperança do preço da corrida diminuir; poderia ir ao shopping de boas, pilotando a motoca -era assim que se referia à sua futura conquista, “motoca”; e de quebra ainda poderia fazer um dinheiro no tempo livre entregando coisas -ou, caso fosse demitido da fábrica, tinha aí já garantido um sustento. Tudo tranquilo então, só alegrias a moto traria. E por isso ele ralou -e muito -pela habilitação, e depois pela motoca. Fez incontáveis horas extras, guardou dinheiro, deixou de gastar com besteiras -nem sempre, porque também era filho de deus, mas sempre tinha a vozinha no fundo da sua cabeça, quando abria a carteira ou o aplicativo do banco, dizendo “economiza isso aê, guarda pra motoca”. E ele obedecia. E guardava.

Primeiro tinha esperança de que em um ano conseguiria comprar uma novinha. Depois, compro uma usada, se deus quiser. Um ano e meio, uma seminova, é o que vai dar pra pagar. Também, teve alguns imprevistos: os óculos que a mãe precisava, a máquina de lavar que quebrou do nada, o Samsung velho que precisava ser trocado, aplicativos nem atualizavam mais. Vida de pobre é foda, ele dizia, sempre que tinha que gastar dinheiro da poupança. Mas tinha fé: depois reponho. Tudo certo. Então seguia.

Depois de dois anos e meio, finalmente, a motoca: seminova a lambretinha cinza. Bonita, tão bonita. Comprou com um amigo de um colega de um primo seu, maior rolê. Mas tudo certo. O cara veio pilotando a moto até sua casa. Leandro, no portão, parecia uma criança no aguardo do brinquedo novo. Quando viu a mensagem “tô quase aí”, pousou os olhos no final da rua, o coração descontrolado batendo no peito. Enfim, a viu. Quando o amigo parou a moto no meio fio e desembarcou, tirando o capacete, Leandro mal pode acreditar. Cumprimentou o cara, agradeceu o bom negócio. Deu voltas ao redor da moto, analisando, olhando bem cada centímetro dela. Mal podia se conter de felicidade.

—Vai dar uma volta agora? - o cara perguntou.

—Vou nada, fi. Vou buscar a mina só mais tarde só.

—Dá uma volta aí, tio, só pra ver.

Leandro olhou para o cara. Depois para a moto. É, por quê não?

—Pode entrar, entra aê, que vou demorar, e riu, colocando o capacete e subindo na moto. Ainda não conseguia acreditar que aquilo realmente estava acontecendo. Deu partida e saiu.

E era exatamente tudo que imaginava. A sensação, a mão no guidão, a paisagem passando ao redor. Sentia-se livre. Desinibido. Veloz. Ia só dar uma voltinha na rua, mas se empolgou. Decidiu subir para a avenida. Deu seta, aguardou, e foi, ao lado de um ônibus. Ia só até um ponto ali perto da avenida e depois voltar, mas se empolgou. Foi um pouco mais longe, aumentando aos poucos a velocidade. Até fechou um pouco os olhos, pra sentir tudo aquilo do jeito certo. Abriu quando ouviu a sirene. Olhou para o lado, o policial militar na viatura fazendo sinal pra ele parar. Engoliu em seco. Foi desacelerando até parar no meio fio. Desceu da moto, tirando o capacete.

—Encosta, o PM ordenou, batendo a porta do carro, a arma já na mão.

—Ué, fiz nada, mano.

—Falei pra encostar.

Leandro levantou os braços atrás da cabeça e abriu as pernas. Caralho. Por quanto tempo tinha rodado? Se tivesse dirigido menos, se tivesse ido menos longe. Por que que teve que ir tão longe na avenida? Sentiu a mão do PM passando pelas suas pernas, apalpando suas coxas, os bolsos.

—É seu o veículo?

—É, acabei de comprar.

—Cadê o documento?

—Tá em casa, tá tudo em casa, moro ali óh.

O PM fez uma cara que foi o suficiente para Leandro saber que estava ferrado. Só conseguia pensar que ia atrasar pra buscar Mariana. Foi quando ouviu um chamado lá de dentro da viatura. Uma voz robótica anunciava alguma ocorrência. O parceiro chamou o PM. “Bora, deixa ele aí.” O homem ainda deu uma boa olhada em Leandro, intensa o suficiente para fazê-lo olhar para baixo, incapaz de sustentar o olhar.

—Deu sorte dessa vez hein.

Leandro só conseguiu se mexer quando a viatura partiu. Continuava se perguntando por que tinha ido tão longe, por quê? Subiu na moto, ligou e partiu, pensando que na real nem era esse o problema. Chegou em casa, disse pro amigo que tudo certo, que a moto era boazona.

—Vai buscar a mina com ela hein, chegar arrasando.

—Ah acho que vou de ônibus mesmo. Melhor economizar a belezura, respondeu, sorrindo de lado. Essa foi a desculpa que deu incontáveis vezes no futuro, sempre que sugeriam de ir de moto: melhor economizar a belezura.