GUERRA ALVA: UM ENSAIO SOBRE O POEMA “OCIDENTAL” DE JOSÉ PAULO PAES

WHITE WAR: AN ESSAY ABOUT THE POEM “OCIDENTAL” BY JOSÉ PAULO PAES

Giulia Rodrigues da Silva (USP) ¹

Consulte a produção acadêmica aqui.

1. Quem, eu?

A primeira publicação de Ocidental foi no livro Anatomias (1967). Na época, o Brasil era um país decadente no início do que seria uma das partes mais obscuras de sua história. No resto do mundo recém saído de duas grandes guerras, mais uma explodia em busca do triunfo do capitalismo.

Os versos eram breves, sintetizando o que a história contemporânea produzia. Traduziam bem o comportamento discreto de José Paulo Paes, que rejeitava exageros e era objetivo, mesmo em suas metáforas. Sátira e ironia exploravam a realidade política da época, que depois do golpe de 64, deixava preocupação com os dizeres e o medo da censura.

No livro, a igreja é relembrada constantemente em diversos dos poemas, o que revela uma aproximação de Paes com o tema. Duarte (2001, p. 70) diz em seu trabalho, através de uma análise do ensaio “Aquele que não se perdeu pelo nome”, que o autor tinha vasto conhecimento sobre os textos bíblicos. A aparição de termos como “missa” e “reza” está sempre ligada a um questionamento político-social, o que não quer dizer, necessariamente, que seja uma crítica direta à igreja, mas também pode ser para aqueles que ferem princípios em nome da doutrina.

Outro fato importante refletido nas entrelinhas do livro é o posicionamento de Paes. Naves (2008) apresenta na biografia do autor seu entusiasmo pelo comunismo. Ele, que sempre se considerou um homem de esquerda, aprendeu sobre a corrente ainda enquanto vivia em Taquaritinga e mais tarde participou do Partido Comunista Brasileiro. No poema Cartilha (PAES, 1967, p.31 e 32) transparece uma referência à tensão entre EUA e Cuba e a exploração estadunidense dos países latino-americanos, principalmente nos versos que dizem: “USA e abUSA", “carILHA” e “AméRICA ladina”.

A poesia de Paes em Anatomias (1967) salientava e trazia de volta o que era o modernismo da década de 20 e explorava, ainda que timidamente, o concretismo coevo. Além da síntese, ironia e inspiração na vida cotidiana, já citadas, presencia-se o uso do linguajar coloquial do português brasileiro, uma visão crítica do que é dito e comparado e, ao mesmo tempo, subjetiva.

2. Aspectos

O poema é dissílabo, sendo sílabas breves seguidas de longas, ou seja, é um pé iâmbico. Isso promove ao texto um ritmo explosivo nas palavras. Com a atônica sequenciada pela tônica temos a sensação do que seria o som de um míssil, fraco ao ser lançado e forte quando atinge seu alvo.

É um terceto único. Seus três versos em uma estrofe tratam da objetividade e simplicidade do poeta. Tudo o que podia ser dito foi resumido em seis termos curtos. Interessante observar que existe um paralelo, pois as três palavras principais são substantivos: as duas primeiras, substantivos femininos, e a última, masculino. Talvez relacionando as questões pode-se ver os estereótipos preconceituosos de gênero e raça entre a fragilidade e delicadeza associada a mulher branca (missa, miss) e a brutalidade associada ao homem negro (míssil).

Contrariando os versos livres do modernismo, Ocidental tem versos simétricos. Não há rimas, portanto, são brancos. Sobre isso Goldstein (1985, p. 34 e 35) explica: “Quando os versos obedecem às regras métricas de versificação ou acentuação, mas não apresenta rimas, chamam-se versos brancos.”

Pode-se dizer que, baseando-se nas definições de Rosenfeld (1961), trata-se de um poema lírico por sua brevidade textual, modo de enunciação em primeira pessoa, intensidade, retratação de um curto período de tempo e grande proximidade entre sujeito e objeto, além de se passar no presente. No entanto é uma narração objetiva dos fatos, a subjetividade de certa maneira existe no contexto, mas a forma como é escrita é resoluta como na poesia épica. Então entende-se que lírica tem acepção substantiva e a épica adjetiva, pois a primeira é predominante, enquanto a segunda empresta alguns traços seus ao poema.

As imagens, à primeira vista, são três: a missa, a miss e o míssil, que podem ser traduzidas em igreja, aparência e guerra. Mas é claro, isso é plural e não pode ser colocado dentro de uma caixa, ter seu significado sintetizado, pois como disse Paz (1990, p. 47): “A ambiguidade da imagem não é diversa da ambiguidade da realidade”. Paz (1990, p. 47) também diz que as imagens nos lembram daquilo que realmente somos, algo constatado nesses versos que trazem a reflexão da história ocidental, forçando o olhar para o passado de nossos ancestrais, crenças e nações. É o momento esse que “recria, revive nossa experiência do real” (PAZ, 1990, p. 46).

Há duas figuras de efeito sonoro, a aliteração de “m” e “s” e a assonância de “i”. A repetição de “mis” recorda o som que o míssil faz quando cai, o que poderia dizer que todas a três imagens são como objetos caindo, cada vez mais perto de uma grande explosão. Se analisarmos os fonemas separadamente, Grammont (1947, p. 312 apud CANDIDO, 1996, p. 57) diz que consoantes labiais passam a ideia de “desprezo e asco” por sua articulação ser “visivelmente exterior”, como o [m]. Já a vogal [i] é uma vogal grave, alta e não arredondada, o que pode indicar um sentimento de algo que não sai com fluidez, mais fechado, e o [s], fricativa alveolar, demonstra uma hesitação, algo que está para acontecer como uma panela de pressão.

A construção e sequência das palavras também falam algo. A primeira tem cinco letras, a segunda quatro e a terceira seis. Vemos que os termos tem ordem crescente, mas não estão organizados dessa maneira. Existe uma ida e vinda, algo que quer ser e ao mesmo tempo não. Uma hesitação, como já dito do [s], mas que quando se desprende, desemboca e cresce. Misseis hesitam? Não, eles não têm hesitação, quando são lançados vão atrás dos seus alvos sem pensar duas vezes. A igreja hesitou em algum ponto? Talvez, para manter as aparências, mas logo passado seguiu adiante a diante com os seus planos.

3. Substantivos

          3.1. A missa

Quando associamos o cristianismo a guerras, logo pensamos nas guerras santas, principalmente nas cruzadas. Foi no ano de 1909 que os cruzadistas, em busca da ocupação da Terra Santa, invadiram Jerusalém e mataram todos os mulçumanos que atravessavam seus caminhos. Sangue derramado pelo catolicismo não foi exceção. Durante a Idade Média, a Santa Inquisição, que perseguiu e matou pessoas em atos injustificáveis, também pode ser lembrada como um momento entre missa e míssil. Pessoas sendo queimadas por suas heresias não ocorreram somente na Europa. Durante o Brasil colônia, blasfêmia, adultério, sodomia, judaísmo e protestantismo eram condenados com a morte pelo clero.

O ocidente branco e cristão também usou de sua força para ocupar terras e cometer atos genocidas contra outros povos, desde quinhentos anos atrás até os dias atuais. Quando chegou ao Brasil, a primeira coisa que fez Pedro Álvares Cabral foi celebrar uma missa. A igreja católica teve papel importante na escravização e morte de indígenas e africanos no Brasil, foi na interpretação errada das folhas do livro portador de sua doutrina que a falácia da inferioridade dos povos da África começou, em gênesis com a maldição de Noé jogada em Canaã. Além dos próprios algozes serem cristãos, como os bandeirante, os jesuítas também colaboraram com o apagamento da cultura de milhares de povos originários e forçaram a ocorrência do sincretismo para que divindades de outras religiões pudessem continuar a serem cultuadas, pois queriam mais fiéis. Voltando a pensar em conflitos entre cristãos e mulçumanos, é curioso lembrar que o Estados Unidos, um país de maioria cristã, tem grande papel nisso. Foi ele quem no final da década de 70 realizou uma ocupação no Afeganistão para forçar um gasto bélico da União Soviética, aliada do país que, com isso, teria que defende-lo defendê-lo. A relação entre os afegãos e estadunidenses era boa, mas a Guerra do Golfo alterou a concepção dos primeiros e refletiu na revolta de grupos extremistas, culminando nos ataques do 11 de setembro. Esse foi o motivo que os EUA precisavam para declarar países mulçumanos do oriente médio como o “Eixo do Mal” e invadi-los sob diferentes pretextos. Esses fatos não ocorreram na época em que o poema foi escrito, mas mostram como ele é atemporal.

Paes viveu de perto a propaganda anticomunista da igreja católica, iniciada na década de 10, fortificada na de 30 e continuada na Ditadura Militar para conter movimentos operários que buscavam emancipação. Isso também ocorreu nos EUA, mas com a intenção dos católicos serem mais ativos na nação, apoiando as pautas populares. Or(aprovo)bis (PAES, 1967, p. 61) tem semelhanças com Ocidental. Fala sobre missa e submissão, cita pessoas ilhadas, roubo e, provavelmente, Deus. Talvez esteja falando sobre a submissão às ideias cristãs e a Deus, ou também ao patrão capitalista. O roubo pode ser o que os EUA fizeram ao impor um bloqueio comercial à Cuba, os ilhados. Os dois estão ligados pelo apoio do cristianismo ao ato, e os ideais anticomunistas dele. Já Pavloviana (PAES, 1967, p. 23 e 24) leva esse titulo pois faz analogia com a experiência de Pavlov, que consistiu em induzir a mesma salivação dos cães quando viam carne ao escutarem o barulho de uma sineta. O três primeiro versos contam o método por meio de “sineta”, “saliva” e “comida”, os seguintes seguem a harmonia para representarem a criação da igreja, do partido e da palavra. Pode ser que haja uma reflexão que diz que acreditamos em algo normalizado pela sociedade e esquecemos a essência daquilo, os mistérios, a revolta e a emoção. Mais uma vez, tem se a referência a igreja e ao Partido Comunista Brasileiro, a qual Paulo acabou se afastando por divergências de pensamento.

          3.2. A miss

Entra-se no campo das aparências. Miss tem vários significados em inglês. Pode ser um pronome de tratamento, senhorita em português, pode ser saudade, quando dito em “I miss you” e também denomina as competidoras de concursos de beleza, as misses. O que teria a ver beleza com o restante do poema? Não é propriamente a beleza, mas o fator da aparência. Algo que pode parecer correto por um lado, mas pelo outro não é bem assim. Quantos são os cristãos que fingem ter uma vida alternativa em temor da opinião pública? Há muitas regras e tradições e, na maioria das vezes, não são seguidas à risca, principalmente as que não são escolhas próprias.

Essa imposição abre espaço para grandes hipocrisias. Alguém pode não se casar virgem, ter se divorciado e ser um adúltero, mas ainda assim terá o poder de condenar LGBTs. Muito se diz que o preconceito nasce de uma repressão. Até que ponto uma negação interna, que gera raiva e medo, pode ser colocada para fora de modo violento com grupos para que terceiros não descubram segredos?

A religião prega o amor ao próximo, mas alguns do que estão dentro das instituições colaboram diretamente para a manutenção da violência com pessoas marginalizadas. Por trás da aparência de uma proteção aos seus e aos outros, e da chamada salvação divina, está a perseguição.

Mas não se esquece do belo. O belo e santo da guerra. Soldados que assassinam civis são condecorados como grandes heróis. Uma nação que gasta milhões no bélico, mas tem cidadãos em extrema pobreza é poderosa e evoluída. Aqueles que morrem se tornam pessoas exemplares, quase santos e ganham homenagens, missas para relembrar suas vidas. Mas essas pessoas eram boas? Ou fingiam ser? E se fingiam, merecem o inferno ou o perdão, para que se pense sempre no melhor? A morte pode não ser gloria, mas um ato simples da vida.

          3.3. O míssil

Misseis remetem à a guerra, mas talvez possam ter um outro significado. Em a A Maiacovsk (PAES, 1967, p. 39), em alusão ao triste fim do poeta, Paes fala sobre suicídio: “uns te preferem suicida” “eu te quero pela vida”. Pode ser inspirado no poema Sierguéi Iessiênin, em que Maiakovski homenageia o amigo suicida, mas pelo título ser com um artigo feminino, talvez Paes estivesse se referindo a uma mulher, e não ao poeta russo (Giulia, nesse caso, o “a” não é artigo e sim preposição, com sentido de “para”). A morte pode ser um ponto em comum com Ocidental. A miss é a vida de aparências e o míssil o ato final.

A depressão poderia ser um míssil, algo que entra devagar na vida de quem a tem e de repente explode tomando para si o corpo do enfermiço. Aqueles que desse mal sofrem não parecem estar doentes, tampouco infelizes, mas por dentro há um vazio de sentimentos e uma culpa que sobrecarrega. A sensação de estar sozinho e não poder contar com ninguém, nem mais com Deus. Mas para aqueles a quem se dirigem, o sorriso no rosto deixa enganada a verdade. A igreja condena os suicidas. Eles devem ir para o purgatório pois rejeitam a vida que Deus a eles concedeu. Como pode alguém ser culpado de não ter aguentado mais uma existência de dores? Seria uma rejeição à a vida ou ao sofrimento. Até onde a pressão dos dogmas poderiam levar um individuo a sucumbir ao final da vida? Não poder amar a quem se ama, ser quem deseja ou cultuar suas entidades.

A igreja condena os suicidas. Eles devem ir para o purgatório pois rejeitam a vida que Deus a eles concedeu. Como pode alguém ser culpado de não ter aguentado mais uma existência de dores? Seria uma rejeição à a vida ou ao sofrimento. Até onde a pressão dos dogmas poderiam levar um individuo a sucumbir ao final da vida? Não poder amar a quem se ama, ser quem deseja ou cultuar suas entidades.

Os anos de chumbo também pressionaram e causaram desesperança na população, há os que se foram de propósito por medo, porém é fato que muitos dos suicidas não se mataram de verdade. Fingir o autocídio era mais fácil do que explicar torturas e assassinatos. A igreja também tem sua parcela de culpa, pois alguns dos seus apoiavam o sistema que prezava pelo tal cidadão de bem.

O que teria Paes pensado ao escrever Ocidental?

Referências

ADORNO, T. W.. Notas de Literatura. In: ADORNO, T. W. Palestra sobre lírica e sociedade. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003. p. 65-90. Trad. de Jorge de Almeida.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 5. ed. São Paulo: Editora Humanitas, 1996. p.161.

DUARTE, Madileide de Oliveira. A ossatura poética de José Paulo Paes. 2001. 121 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras, Letras e Linguística, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2001. Disponível em: http://bdtd.fapeal.br/Titulos/243/a-ossatura-poetica-de-jose-paulo-paes. Acesso em: 04 ago. 2021.

GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 1985. p.80.

JORNAL N: As “guerras santas” são eternas. Digital, 29 abr. 2019.

MELO, Alberto Lopes de. José Paulo Paes e a anatomia do poema. 2006. 89 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras, Departamento de Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 2006.

MORAES, Aline de Prado; SABEH, Luiz Antônio; RAMOS, Wanessa Mareotti. Inquisição no brasil: casos das heresias da colônia

PAES, José Paulo. Anatomias. São Paulo: Cultrix, 1967.

PAES, José Paulo. Poesia completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p.518. Apresentação de Rodrigo Naves.

PAZ, Octavio. Signos em Rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo, Perspectiva, 1990.

RODEGHERO, Carla Simone. Religião e patriotismo: o anticomunismo católico nos estados unidos e no brasil nos anos da guerra fria. Revista Brasileira de História, [S.L.], v. 22, n. 44, p. 463-488, 2002. FapUNIFESP (SciELO). https://www.scielo.br/j/rbh/a/tM4btpprcSKfZTJQDTwj99t/?lang=pt.

ROSENFELD, Anatol. A teoria dos gêneros. In: O teatro épico. S. Paulo. Perspectiva, 1986.

SELNER, Raquel. O suicídio de Maiakóvski. Rus (São Paulo), [S.L.], v. 10, n. 14, p. 135-151, 10 dez. 2019. Universidade de Sao Paulo, Agencia USP de Gestao da Informacao Academica (AGUIA). https://www.revistas.usp.br/rus/article/view/158757.

¹ Graduanda no curso de Letras da FFLCH USP