O Novo Voo

por Gustavo Henne Gonçalves

Todo dia é sempre igual, ou era, pois as coisas mudaram, depois que trocaram sua antiga função por máquinas vem vindo uma correria, é currículo ali, currículo lá, mas nenhuma resposta. Abriram vagas para um emprego público, limpador de ruas, uma oportunidade incrível. Só lhe resta fazer a prova, isso não é problema, ele sempre amou estudos, apesar de ter sido obrigado pelo mundo a fazer supletivo, as bocas estavam vazias… Não tinha muito dinheiro já, mas depois dos preços subirem ridiculamente, foi preciso ele, o mais velho, abandonar a escola, procurar um emprego para comprarem comida. Podia ser pior, poderiam ter de viver debaixo da ponte, como foi com a família vizinha. Enfim, chegou o dia da prova, as mãos tremendo, coração na boca, o tempo voou.

Andando ele volta para casa, a prova não estava tão difícil, difícil é subir aquela rua, principalmente sob o sol de rachar. Chegando em casa, agora quieta - seus filhos dormem - sua linda mulher pergunta:

- Como foi lá, dengo? - disse enquanto esquentava aquela deliciosa comida.

- A prova não tava tão difícil. - disse ele sorrindo.

- Deus queira, não dá mais esses bicos, tenha casa para limpar. - disse ela em tom de brincadeira.

- Amém, Marí, tudo parece estar indo bem. Como dizem: Deus escreve certo em linhas tortas. - Maria abre um sorriso.

Realmente, os bicos estavam péssimos, já que eram muito pesados e com um mau pagamento, fora que as crianças ficavam com a dona da casinha deles, a senhora já os olhava feio. As crianças são três, três anjinhos, Felipe não quer que elas sofram como ele e sua esposa, ele quer que elas consigam terminar os estudos com elogios, quer que façam faculdade, ele sonha em ver seus pequenos virarem doutores, um dia ele ainda vai ver isso, custe o que custar. Todo dia ele vai ficar sob o sol, mas com um sorriso aberto, pois seus anjinhos vão virar doutores.

Depois de muita ansiedade e de muito trabalho veio o resultado, ele não esperava isso de jeito nenhum: Felipe passou em primeiro. Vai poder viver com mais dignidade, vai poder comer melhor, dormir melhor. Muito trabalho pela frente, lá vem o novo, pensou. A primeira coisa que fez foi comemorar com sua família numa lanchonete saborosa, cada um pegou um prato.

- Pai, agora que tem esse trabalho a gente vai ter um carro? - disse o mais novo.

- Não, anjinho, o trabalho novo não me deixou rico. - disse Felipe rindo.

- Mas, pai, por que tão tão felizes? - disse a do meio

- Anjinha, agora eu vou poder cuidar melhor de vocês, vão poder até ganhar ovo de páscoa esse ano!

- Mal vejo a hora! - disseram os três.

Após se divertirem nesse dia, Felipe foi procurar uma boa bicicleta, ficar andando seria péssimo, ainda mais considerando a distância, e o ônibus está caríssimo. Porém, não podia ser cara, ele gastou muito no dia anterior, mais do que podia… O jeito foi comprar uma usada, estava até meio ruim, mas melhor do que as outras opções, sorte sua que ele sabia arrumar, seu pai lhe ensinara isso. Era só preciso trocar umas peças e colocar o óleo, foi simples, faltou um parafuso ou outro, mas como isso fará falta? De qualquer modo, ele precisará usá-la no dia seguinte.

De manhã, sua esposa lhe prepara sua marmita, ele sente o cheiro saciante na cama, levanta como um sonâmbulo, chega na cozinha, dá um beijo quente nela.

- Que cheiro mais maravilhoso, Marí, feijão eu sei que tem, mas vai ter mais o quê?

- Olha, é fim de mês, sabe?, não tem muito, vai ser arroz e feijão até aquela mulher me pagar o que deve, acho que nessa quarta eu recebo. - disse cabisbaixa.

- Não se preocupa, hoje vou comer como um príncipe. - Maria abre um sorriso pontual.

- Deixa agora eu fazer o nosso café. - Maria amava o café da manhã de seu marido.

Dá seis e meia, as crianças acordam, Felipe tem que levá-las para a escola, deu trabalho ele vestir todas, pois mesmo os anjos ficam emburrados. Sempre uma correria, acaba que o próprio pai escova os dentes de todos, bota os sapatos e arruma o material, isso não mudou. Ele abre a porta, e sai. O caminho é curto: em vinte minutos eles estão lá. Durante o caminho eles conversaram sobre o céu, a terra e a vida, no fim o pai deu um beijo forte em cada um. Viu eles indo embora e suspirou: meus anjos doutores. Seus filhos olham para trás, já com saudade.

Voltando para casa, Felipe pensa no novo que há por vir, em como serão seus próximos dias de trabalho, em como será melhorar um pouquinho a vida, em como será ter orgulho de si… Ele pensa em sua esposa, em como tem sorte em tê-la, todo dia ele tem o desejo de servir a ela, pensa que uma eternidade assim seria pouco, ele quer envelhecer com ela, morar no campo e viver da própria terra, ter seus doutores lhe visitando, o futuro, o novo, é esperançoso. Chegando em casa, sem saber o porquê começa a rir, olha para Maria, sentada como uma bela estátua como naquelas pinturas antigas, jogada no sofá velho. Ela sorri para ele, ele senta ao lado dela e lhe dá um beijo na testa.

- Eu quero envelhecer com você, Marí. - fala com lágrimas nos olhos.

- Nós vamos e você vai voar como um pássaro. - disse apaixonada.

- Você é o melhor de mim, não sei como faria tudo sem você.

- Somos uma bela equipe, dengo. - eles se abraçam.

Ele levanta, se arruma, pega sua bicicleta e vai embora, mas antes se despede da linda Maria, olha para ela e diz: sempre vou te amar. Ela diz que também o ama e o olha sorrindo pelos olhos. Ele parte feliz.

Essa bicicleta é bem mais rápida, ele não esperava isso, ele quase voa, há apenas um som irritante, deve ser a falta do parafuso, mas tanto faz. Nesse ritmo, ele vai chegar bem mais rápido. Ele chega no local de trabalho, troca de roupa, e fica invisível. Foi varrer a rua, as pessoas o ignoram, quando não, jogam lixo no chão e até nele, mas isso ele esperava, ele pensa em seus anjinhos e nada muda, a esperança está com ele, uma lágrima cai, mas não é tristeza, mas sim, felicidade. Ele ouve um ruído:

- Ô, folgado! - uma mulher grita, ele não olha.

- Vem aqui! - ela berra, ele não olha.

- Cê é folgado mesmo, hein. - ela joga o lixo nele.

Ele não se importa, pega aquele copo e muda de calçada. Ele não se abala com isso, só espera que ela mude, mas sabe que a ignorância tem pouca cura. Como alguém age daquele jeito?, pensa. Ele se sente feliz por sua mãe e a vida terem lhe dado tanta empatia… Sente pena da idiotice daquela mulher. Durante o resto do dia ele apenas varre, anda e varre. No fim do dia, ele liga para sua esposa:

- Oi, Marí, tudo certo aí? - disse feliz.

- Está certinho, fiz uma faxina na casa do fim da rua, ganhei uma graninha.

- Que bom, espero que consiga fazer mais nessa casa, eles são simpáticos.

- Sim, e por aí?

- Foi muito bom, acho que nesse emprego eu perco a barriga. - disse rindo.

- Para mim ela é um charme. - rindo de volta.

- Logo eu estou em casa, te amo para sempre.

- Te amo!

Pegando sua nova bicicleta, depois do estresse do seu dia, ele se sente pelo menos esperançoso, pensando que o novo trará felicidades, apesar do trabalho ter seus problemas, mas onde não há problemas? Ele desce a rua, percebe que está escurecendo, aparece a primeira estrela da noite, ela é muito linda, brilha tão forte, isso lembra sua mulher… Ele se distraiu muito, porém ele continua seu percurso normalmente. Está cheio de carros na rua, isso o assusta um pouco, pois sabe que as pessoas não têm cuidado, não se importam com o ciclista, ele faz o cruzamento timidamente, o guidão está frouxo, por isso ele vai com muito cuidado.

Porém, no ar se ouve jovens gritando, um barulho de um motor forte e veloz, do céu os anjos já pegam sua caderneta, o jovem acelera, Felipe só vê uma estrela e voa como um pássaro e cai no chão como um pacote flácido. Felipe está morto, só sobrou seu boné na avenida, um pequeno rastro seu. Sem mais nem menos, um ser tão feliz, tão vívido, tão esperançoso tem seus sonhos atropelados. Já os jovens, bêbados, num carro veloz vão embora sem nem olhar para trás, no corpo de Felipe chega somente a risada dos jovens. Nem notaram o corpo ou a bicicleta despedaçada. Se notaram, não ligaram, para eles isso estragaria o momento.

Felipe morreu, demorou para alguém notar, pelo menos os anjos já o haviam levado. Seu corpo continuava na calçada, poucas pessoas passavam lá, seu sangue escorre na sarjeta, uma moça vê, desesperada liga para a ambulância… Ela… Demorou… Mas chegou, quarenta minutos depois, a moça ficou lá, disse que não sabe o que aconteceu, só achou o corpo. A morte foi tão rápida, contudo o resgate demorou tanto.

Maria estava preocupadíssima, onde estava Felipe? Será que havia sido roubado? Assassinado? Era o trânsito? Não, ele estava de bicicleta, como estaria demorando tanto? O trabalho o prendeu? A polícia lhe parou? Meu Deus, só o pior vem à mente? Por que sempre assim? Os anjinhos já choram sua falta, querem brincar com o pai, calma, Maria, ele já chega… Será?... O desespero lhe toma.

- Mãe, cadê o pai, ele se escondeu? Ele disse que ia brincar de esconde-esconde hoje. - disse o mais velho fazendo bico.

- Não sei, filho, deve estar preso em um problema do trabalho, é o primeiro dia, esse tipo de coisa acontece, mas tá tudo bem, sempre tá. - disse num tom acalmador, como ela queria que alguém a reconfortasse também.

- Tá bom, mãe, então faz pipoca pra gente?

- Faç-. Maria é interrompida.

O telefone toca, as pernas de Maria tremem, aquele som agudo, Maria vai aos tropeços ao telefone. Atende o telefone com as mãos suadas já:

- Alô, dengo? - diz com a voz trêmula.

- Boa noite, Maria Rodrigues da Silva? - diz um homem numa voz séria.

- Sim. - mais trêmula.

- Infelizmente seu marido foi encontrado morto, aparentemente atropelado, você poderá buscar seus pertences amanhã a partir das oito horas da manhã e fazer as documentações necessárias. Meus pêsames. - disse em segundos sem titubear, como deve fazer normalmente.

- Meu Deus, meu den-... - ela desmaia.

Os anjinhos de Felipe vêm acudi-la, desesperados, gritando, após alguns minutos de desespero a mulher acorda, chorando:

- Meus pequenos, o papai foi morar com os anjos! - disse tremendo, ainda deitada.

- Como assim, mãe? - disseram os mais novos, enquanto o mais velho já chorava.

- Ele morreu. - disse o mais velho, os dois passam a chorar.

- Como? o pai? Por quê? Quem matou ele?! Quero meu pai de volta, ele é meu pai, não podem tirar ele de mim! - disse a do meio, aos berros. O mais novo estava catatônico.

- Meus bebês, agora só somos nós! - disse a mãe abraçando os filhos.

Ninguém esperava por isso, Maria nem conseguia deitar na sua cama, ninguém conseguiu comer, ela até virou todos os quadros em que estava seu marido, não queria mais saber sobre ele, nem lembrar que algum dia existiu, ela queria esquecer da dor, uma dor tão forte. Seus filhos estavam todos juntos, abraçados, chorando, lembrando do pai, que ele brincaria de esconde-esconde. E se tudo fosse brincadeira e ele apenas estivesse escondido? isso só pode ter sido um erro. Não, a mãe não mentiria para eles.

Maria não sabia o que fazer, como comeriam agora? Como sobreviveriam? Ela não tinha profissão, teria que ralar muito, todos seus sonhos ficaram de costas para ela. Ela dormiu no sofá…

A família de Felipe perdeu tudo, não conseguiram pensão, nenhuma herança, o Governo não ajudou em nada, o mais velho teve que trabalhar cedo, os anjinhos não viraram doutores. Maria entrou em depressão, só conseguiu péssimos empregos, quando conseguia, demorou anos para ter um emprego decente, a dignidade demorou. Tiveram anos terríveis: poucos sorrisos, muitos trabalhos. Os filhos lembravam do pai com tristeza, principalmente quando o mais novo passou no vestibular, Maria pensou durante o resto da vida como teria sido se aqueles jovens não tivessem acelerado tanto, ou bebido, eles nunca foram culpados. Enfim, ao menos a família era unida e encontraram a felicidade, principalmente depois de alguns anos. A vida nunca foi luxuosa, mas no fim havia esperança, Maria era esperançosa em memória de Felipe, ele sempre estava a traz do novo, ela admirava isso, sempre tinha um novo voo.