Produções dos alunos:
Legislação Atualizada da Ilha Fictícia de Sotul, por Guilherme Alvarez Ferreira
1o Ato: Exposição
O dia era hoje. O nonsense e o teatro do absurdo perdem seu apelo, banalizados. Jornalistas tentam explicar o inexplicável, comediantes não encontram assunto que possa ser extrapolado, historiadores do futuro estão condenados.
Até vinte e tantos anos atrás, pouca coisa destacaria a pacata Sotul de outras ilhas e ilhotas do nosso extremo oriente: uma população humilde, lacônica, de hábitos simples e economia baseada na fabricação de eletrônicos falsificados.
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Héctor esteve doente por uma semana. Meu luto durou por três.
Tudo ao meu redor era frígido, assim que as bolinhas vermelhas fizeram traços em zigue-zague em suas costas pálidas, construindo um caminho até seu rostinho permanentemente corado, que agora fervia por debaixo da ponta dos meus dedos. Veio o meu pavor dos outros dias, quando o médico de mãos trêmulas e cenho franzido, que jamais me traria boas notícias, relatou que aqueles pontinhos rubros exigiam uma distância constante, e que dali em diante, eu não poderia fazer tanto quanto respirar na sua presença, ou segurá-lo em meus braços durante seus pesadelos febris. Teria que assistir de longe ele desaparecer diante dos meus olhos, com meu adeus sendo apenas um sussurro enquanto desejava sair em grito.
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O Novo Voo, por Gustavo Henne Gonçalves
Todo dia é sempre igual, ou era, pois as coisas mudaram, depois que trocaram sua antiga função por máquinas vem vindo uma correria, é currículo ali, currículo lá, mas nenhuma resposta. Abriram vagas para um emprego público, limpador de ruas, uma oportunidade incrível. Só lhe resta fazer a prova, isso não é problema, ele sempre amou estudos, apesar de ter sido obrigado pelo mundo a fazer supletivo, as bocas estavam vazias… Não tinha muito dinheiro já, mas depois dos preços subirem ridiculamente, foi preciso ele, o mais velho, abandonar a escola, procurar um emprego para comprarem comida. Podia ser pior, poderiam ter de viver debaixo da ponte, como foi com a família vizinha. Enfim, chegou o dia da prova, as mãos tremendo, coração na boca, o tempo voou.
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Novamente, por Raphael Alves Fernandes
Não sei novamente o que aconteceu. Outra vez me vejo na mesma cena, mas com personagens diferentes. É outra peça? É um diálogo improvisado do mesmo ato? Não faço ideia.
Não sei novamente o que está acontecendo. Sinto algo, mas é diferente da última vez. Por que preciso sempre duvidar dos meus sentimentos? Não sou um narrador confiável na minha própria série? Não faço ideia.
Não sei novamente o que está acontecendo. Se quero dizer a uma pessoa o que eu sinto, o quanto eu sinto este ano. Eu devo? Muitas condições aparecem e confundem a já duvidosa mente do narrador-personagem. Eu amo? Eu gosto? Estou apaixonado? Estou obcecado? Não faço ideia.
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Quer parar de procrastinar? Pois é, Geroldo também..., por Caio Pereira de Oliveira Moura
22:51, Segunda-feira. Semana praticamente acabada, ao menos, para Geroldo.
Trabalhos, matérias atrasadas, sono desregulado e fome. Você e eu aqui. Eu e você. Eu e eu. Você e você.
Geroldo não sabia mais o que fazer além de esperar e deixar para depois, gerando, assim, um círculo vicioso. Com aquela listinha “safada” — feita no Notion ou num Weekly planner baixado da internet — cheia de afazeres, e por mais importantes que sejam, prefere deixar para o Geroldo do futuro. Este, cujo é bem-sucedido, conseguiu estudar e entregar suas atividades com antecedência. Mas venhamos e convenhamos, ele não existe.
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Uma Mulher Palestra, por Bianca Rodrigues
Conheci a fome aos quatro anos de idade e se dizem que não é comum lembrarmos das memórias em fase tão nova de vida, te respondo que da fome a gente não se esquece nunca. Fazia um frio terrível em São Paulo, era 1994 e naquele dia chovia também, a água entrava pela cozinha da minha casa, bem pelo portão, os cachorros da vizinhança latim muito, um deles era grande e preto, era o Neguinho e só dele eu gostava, naquele dia ele estava preso numa coleira de metal, amarrado à parede, a água vinha e molhava as patas, o rabo longo e preto, eu chorava e pedia à mamãe que falasse com a Néia, nossa vizinha, minha mãe me mandava calar a boca e parar de chorar, mas eu não conseguia parar, Neguinho ia morrer no meio daquela chuva, era um dilúvio de água, os ratos submergiram do esgoto e nadavam, era horrendo, de dar medo e nojo, mas a minha mãe me dizia para que eu não tivesse medo dos ratos, ‘eles, a gente mata com uma paulada bem na cabeça, Tainara’, eu lembro bem do primeiro rato que eu vi minha mãe matando, eu e as crianças da rua estávamos peladas na calçada, a Néia molhava a gente com a mangueira e eu ria solto, todos nós ríamos, de repente um rato apareceu, o Mateus, filho da Néia, gritou forte, minha mãe saiu com a vassoura e correu atrás do rato, ele ainda tentou entrar no esgoto, mas a vassoura foi mais rápida, era sangue na vassoura, sangue no chão e sangue bem na perna da minha mãe, ela foi rápida e entrou pra se lavar, mas desde aquele dia comecei a ter pavor de sangue, mas isso é burrice minha, aprendi muito cedo na minha vida que preto não pode ter medo de sangue não, todo o dia nosso sangue escorre nas calçadas e isso na favela é sempre, eu tive medo de sangue até os vinte anos de idade, até lá a vida ou Deus me permitiram ter esse tipo de luxo, mas a minha mãe não temia nada, ela nunca temeu, assim ela se mostrava a nós, os filhos, ela não temia e quando carecia de coragem tomava pinga e saia andando e rindo.
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Ermenildo, o pavão gótico, por Leouac
Precisamos começar dizendo o óbvio: Ermenildo era um pavão. Não, desculpem, não é bem isso! Ermenildo É um pavão! E como todo pavão, na verdade, todo pássaro, nasceu feio e pelado. Depois foram chegando as penas todas e claro que beleza é diferente para cada um, mas dizem por aí que os pavões são muito bonitos, e Ermenildo, como pavão, tinha lá também a sua beleza de pavão.
Só que Ermenildo era diferente! Talvez por fora tivesse todas aquelas cores doidas que parecem um mosaico, e quando abria a cauda todo mundo olhava, tinha bicho que até caía pra trás de tão maravilhado. Só que Ermenildo quase nunca abria a cauda!
É que ele não queria ser um pavão. Diferentemente da maioria dos pavões, Ermenildo queria sempre passar despercebido. Saía mais à noite do que de dia e, na adolescência, todos achavam que ele era muito rebelde.
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Melhor economizar a belezura, por Vinícius Silva Souza
Por anos o Leandro disse que queria comprar uma moto. Primeiro dizia que queria tirar habilitação de moto. Então dedicou tempo e dinheiro -até mais do que tinha - para conseguir a bendita da habilitação. Passou de primeira -claro que sim, era um rapaz dedicado, estava determinado a conseguir isso. Dizia que a moto ia resolver tudo. Não ia mais ficar plantado em ponto de ônibus, pleno domingo à tarde, voltando da casa da Mariana; não precisaria mais ficar checando o uber o tempo todo na esperança do preço da corrida diminuir; poderia ir ao shopping de boas, pilotando a motoca -era assim que se referia à sua futura conquista, “motoca”; e de quebra ainda poderia fazer um dinheiro no tempo livre entregando coisas -ou, caso fosse demitido da fábrica, tinha aí já garantido um sustento. Tudo tranquilo então, só alegrias a moto traria. E por isso ele ralou -e muito -pela habilitação, e depois pela motoca. Fez incontáveis horas extras, guardou dinheiro, deixou de gastar com besteiras -nem sempre, porque também era filho de deus, mas sempre tinha a vozinha no fundo da sua cabeça, quando abria a carteira ou o aplicativo do banco, dizendo “economiza isso aê, guarda pra motoca”. E ele obedecia. E guardava.
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A Entidade, por Victor Martins
— Eu tô falando que eu vi a Loira do banheiro, é sério. - falou a menina de sete anos, sentada no banco de trás do carro.
A irmã mais velha, olhando-a com a mesma fascinação de quando se vê alguém muito inteligente, ou muito idiota, perguntou; mal conseguindo segurar a risada:
— E como ela era?
A mais nova, ainda meio apavorada e com as lágrimas já secas no rosto, respondeu com toda a sinceridade de uma criança de sete anos:
— Ué, ela era loira.
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Confissões ao Pôr do Sol, por Rafaela Matos Martinelli Raimundo
Dedico estes versos
ao teu corpo, celeste
grandiosidade natural
de um vislumbre terrestre
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O que há de novo?, por Matheus Balduino Cunha
o raio que lampeja
o microcosmos na energia
de formar a ideia que
alcança o neurônio seguinte
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