A marca de Daehan Minguk

Será o ser humano um ser cruel por natureza? Assim como esse anônimo personagem da obra, eu também me pergunto… Escrito por Han Kang, traduzido por Ji Yun Kim e publicado no Brasil em 2021 pela editora Todavia, Atos Humanos é um livro que exprime todas as atrocidades cometidas em meio à fase mais brutal da ditadura sul-coreana (que durou de 1961-1988): a primavera de 1980. A história foca principalmente nos acontecimentos que sucedem A Revolta Democrática contra o Regime Militar, em 18 de maio de 1980, quando milhares de cidadãos coreanos se reuniram em Gwangju - cidade natal da autora - para se manifestar contra a Lei Marcial imposta pelo governo da época.

Capa do livro "Atos Humanos"

A forma com que Kang escolhe retratar as consequências da repressão passa longe do agradável, e as descrições detalhadas de torturas e cadáveres em decomposição ocupam lugar de destaque na narrativa - ou melhor, narrativas. O personagem principal da trama é Dongho, um menino de 15 anos que se separa do seu vizinho em meio a um protesto brutalmente repreendido pela polícia em Gwangju;  culpado, Dongho passa a procurar pelo amigo em hospitais e no auditório ao lado do Docheong, prédio do governo provincial, onde as vítimas fatais das manifestações aguardam o reconhecimento das famílias. Enquanto não encontra o vizinho, ele decide ajudar na preservação do local e nas visitas aos corpos. É nesse local que Dongho conhece os personagens que irão compor o enredo da obra, distribuído em tempos e pessoas diferentes.

Han Kang, autora de "Atos Humanos"

Atos Humanos é um livro polifônico, contando com diversas perspectivas a respeito do que foi a ditadura sul-coreana: do ponto de vista de quem morreu, de quem busca pelo corpo desaparecido de um ente querido, de quem foi preso, torturado ou censurado e dos familiares que têm que lidar com a perda e a saudade. O mais interessante dessa diversidade de vozes é que todas possuem a sua própria história, que converge com as outras em um determinado ponto e logo depois se dissipa, fazendo com que cada capítulo traga uma surpresa, uma vez que tanto o conteúdo quanto a forma de narração das histórias contadas varia de personagem para personagem. 

Ainda que tente, o livro não registra momentos alegres ou aconchegantes em suas 192 páginas. Cenas como as da infância de Dongho, por exemplo, procuram esboçar algum traço de conforto, mas logo se tornam tristes e solitárias. Han Kang, dessa forma, consegue sintetizar como os acontecimentos de um dia podem perdurar por uma semana, ou até cinco, dez, vinte, ou trinta anos sem nunca se apagarem, seja para aqueles que foram diretamente afetados pelo horror ou para aqueles que ficaram apenas sabendo, como é o caso da própria autora - e é neste ponto que se percebe a maestria do enredo. 

O livro chega a agir como documento histórico, pois, ainda que reúna relatos de personagens fictícias, ele apresenta histórias verdadeiras. Essa obra serve, definitivamente, como uma grande lembrança aos sul-coreanos de sua história. Uma marca. Mas não como uma tatuagem, e sim feita a ferro quente, num processo extremamente doloroso.

Atos Humanos é tão forte quanto é doloroso de se ler. Por mais que se trate de uma obra de ficção, o livro traz uma sensação de realidade semelhante àquela conseguida pelo escritor português José Saramago em suas obras: uma realidade nua e crua, que incomoda e quase não deixa espaço para respirar. Altamente recomendável para aqueles que se interessam por literatura estrangeira e desejam entrar em contato com contextos históricos pouco abordados pela mídia ocidental. Han Kang fez sua estreia mundial com o livro A vegetariana (2007), aclamado pela crítica e adaptado, em 2009, para o cinema pelo diretor Lim Woo-Seong. Atos Humanos é uma continuação de sua literatura marcante e dolorosa.

Por Giovana Tomaz Eufrozino

Revisado por Bruno Pereira Lima