Sobrado de Pernambuco


Shabué Xegu

   

Cada ano que passa leva consigo um móvel a mais; eu, que durante os meses vou selecionando qual o próximo a ser retirado e enviado a qualquer lugar que não seja o interior da minha casa, escolho com paz e sem custeio.

– tira os móveis, meu amor. Tira e me dê espaço que minh’alma está a se crescer.

  A cada ano que passa, estou mais larga, mais longa. Cada semestre traz consigo seus babados em minha pele que se enruga como renda extensa em estreita superfície. Como alvo vestido de noiva guardado numa caixa posta em cima do guarda-roupa.

 Eu, que há trinta anos escolhi os móveis em madeira de pino, hoje vejo que só as paredes é que formam o cômodo. Há anos não há tapetes pela casa, há anos deixei de usar chinelos, abandonei os enfeites, as cores artificiais e tingidas. Depois disso percebi que a luz entrava mais pura pela manhã; e daí decidi quebrar a parede da janela pra colocar uma maior; tenho, agora, uma janela mais larga e mais alta, quase a parede toda em vidro. Deixo a janela aberta o dia todo, nas tardes em que chove vem me gritar gente da vizinhança toda falando que “tá tudo aberto” e “vai molhar tudo” (falam dos móveis e mal sabem que já não os tenho). Às vezes, me levanto da rede pra respondê-los com gentileza, falo pra não se preocuparem, que as coisas frágeis estão todas protegidas. Durante a noite, fico receosa de uma invasão – aproveito pra ficar na cadeira de balanço, bem atenta, aguardando o susto. às vezes cochilo só pra ficar vulnerável ao possível assombro de ver um corpo atlético atravessando a janela repentinamente. Um corpo de homem, de homem ousado e honesto; pois, se se esquecem, ladrão de pobre é tão pobre quanto o assaltado. Não julgo nem odeio ladrões pobres, sou uma senhora negra com consciência de classe. Gosto da reflexão solta a boiar na sala.

Ainda estou a verificar e decidir qual o próximo móvel a mandar fora, cada vez fica mais difícil porque os que sobram parecem então mais essenciais. Mas, quando estou do outro lado do cômodo, percebo que, na verdade, cada vez fica mais fácil se desfazer de um cômodo inteiro de quinquilharia: se não dói uma pequena perda, porque duas doeriam? Não que não doa, doer dói; mas, se eu permaneço inteira à próxima perda, por que não me desfazer? Os sutiãs as brancas queimaram em 60, e deles também já me desfiz; mas as minhas calcinhas, eu ainda as bordo refinadamente, tenho duas. Uma pra quinta, outra pra domingo. Gosto da porcentagem do tempo em que passo vestida, sinto um alívio interessante. Mas nada se compara aos cinco dias que passo desvestido nas intimidades, só nos panos dos vestidos. Gosto do tecido fino e solto que toca meu corpo só vez em quando; uma liberdade e um medo, uma vulnerabilidade gostosa e doce.

Benefícios de morar sozinha. Depois que meu homem morreu, fui me soltando, tenho-o guardado, e muito bem guardado na alma. E dou demasiada importância às minhas lembranças. Mas aos objetos, só tenho indiferença disponível. Mas talvez devesse desconsiderar as lembranças, elas surgem por dor e permanecem por descrermos da realidade.

A posse só é gostosa em doses de soltura.

Namoro um jogador de dama com quem me encontro todo sábado, dia que estou com os meios soltos e me sinto aberta. Não aberta como se alguém me abrisse, mas como me-aberta-eu que me abro. Passamos as tardes dos sábados na praça, às vezes na mesa de dama, que não gosto tanto mas jogo com ele, e às vezes sentamos na sombra. Não nos vemos em nenhum outro dia.

Aquela pele negra, como a minha, brilha no verão de um jeito. Não sei se me molho de suor ou desejo. Ele coça a barba cerrada sempre depois de sorrir; depois que começamos a jogar menos dama e conversar mais, ele faz mais piadas bobas e ri de mim quando rio dele; no fim, a gente se ri junto e ele até esquece de coçar a barba, fica olhando pra mim com os olhos brilhando; quer me comer, eu sei.

Chamei ele pra ir pra minha casa um dia, tinha até esquecido de usar calcinha nos últimos dias. Passei a semana tão livre, banhada em água fria e intensa, descansada na sombra como uma vaca dengosa ruminando o desejo. Na quarta, deitei a rede no final da tarde e acariciei minha púbis numa leveza antiga, procurando um desejo que se acendia às segundas-feira e ia se acumulando até às sextas e no sábado erupçava. Depois de voltar dos passeios na praça, eu me masturbava tanto, não pensando nele, pensando em como eu era desejada. Não tinha mais espelhos em casa, era nos olhos daquele negro que eu me gozava, porque era neles que eu me gozava. Aquele seu grisalho em que eu comparava o meu. Meus cabelos, que sempre foram curtos, cresceram e os deixei crescer; queria vê-los, e sem espelhos em casa (porque mandei todos embora)  só os poderia ver se crescessem até caírem por cima dos olhos. Estavam cada vez mais grisalhos. Todo sábado, deitada na rede, levantava o vestido e via meu jardim embranquecendo mais e mais, aquela grama crespa  que embrulhava as águas com que me esfregava. A ponta dos dedos, a metade, dois ou três dedos inteiros. Meu apetite ia se abrindo com os suspiros e a boca de secando. Era como se a saliva saísse da boca e fosse, através dos lençóis enrugados do meu tórax e abdômen, passando até desaguar pelas minhas coxas. Levantava, às vezes, as pernas na esperança de não perder o gozo escorrido no tecido da rede, com o tempo fui deixando, deixando o gozo ser efêmero como é, foi uma das derradeiras solturas que fiz. Abri mão de tentar conter a eternidade que sabemos ser mais efêmera que o desespero.

O gozo se ia todo já no sábado, passava o domingo com sede. Sede dos meus dedos procurando a fonte dos meus orgasmos sempre tão largos, me os permitia pelo vazio da casa. Sem móveis, meus gemidos iam e voltavam em ecos. Eu gemia numa eternidade. Numa eternidade que ressoava “a maior propagação do ser é o eco”. Meu gozo ia, e meu gozo voltava. Na segunda-feira, o processo de produção de desejo se irrompia e ia se projetando e fincando alicerces para, no sábado e na sua véspera, pudesse ser-se intensa como uma descarga elétrica sem derrubar o corpo atingido. Ou derrubá-lo amparando-o nas minhas coxas.

Divaguei, e acabei por não contar como foi quando chamei ele pra vir em casa. Era pra passar a noite. Disse bem isso: – vai passar a noite lá em casa. Ele sabia que não era pra dormir. Meus olhos diziam que eu queria ser chupada.

Marcamos às 18h, mas pedi pra ir mais cedo pra gente ver o pôr do sol pela varanda. Fiquei desde às 17h sentada na varanda. Toda nua de adereços, que abandonei com o luto do meu falecido; de quem também me desfizera das fotos. Dele, acredito que não carrego nada, carregar pressupõe alguma espécie de peso, e acredito não estar com disposição pra carregar nada.

O importante, enfim, é que eu estava toda nua. Toda nua. Toda nua. De pele toda nua; a orelha furada e sem brinco. A pele ainda fria com o creme  corporal que havia passado, e o corpo frio até as entranhas pelo banho gelado que havia tomado. Uma pele nua, fria e molhada.

Fui pra varanda assim. A tarde estava quente. E meu corpo secando aos poucos aquele úmido que estava nas minhas dobras e rugas mais cavas. Só um leve vestido a cobrir minha total nudez. Ali, do terceiro andar,  vi-o chegando e passando na esquina. Não trouxe flores por pedido meu. Flor sem raiz é morte e eu gozo da vida. Queres me dar perfume? faz-me suar que te exalo o aroma de mulher amada, mulher amada e conhecida por si mesma. Me goza que te unjo com o unguento mais ardente que tua boca já experimentou, me faz suar que te banho no perfume da minha carne.

Subiu as escadas e já da porta viu que não tinha quase móvel nenhum no apartamento. Entrou, ficou a procurar algo pra dizer.

– você tá de mudança? a casa tá quase vazia. – e deu uma risada leve.

– de mudança, todo mundo sempre tá. Alguns só não sabem que estão. E os que sabem, às vezes, não têm pra onde ir.

Sentamos na sala, no chão da sala. E acabamos deitados, tombados um sobre o outro. E esquecemos de ver o pôr do sol.

Meu corpo aberto pelo chão frio, coberto de beijos e mordidas que começaram no pescoço e debaixo da orelha e foram descendo até sua barba encaixar na minha pélvis perfeitamente, aquela língua experiente, ensinada pela vida a textura das uvas e a acidez dos vinhos; uma língua que era curadora premiada das melhores extensões percorridas.

Suando horrores pela pele que borbulhava, procurei uma posição que é até difícil de explicar, lembra o que eu fazia quando lavava roupa na máquina de 15Kg.

Enchia a máquina de roupa. A máquina enchia de água, lavava, enxaguava; e, no fim, era então o meu momento: quando começava a centrifugar, eu corria e montava na quina da máquina, a máquina começava a tremer e eu ali encaixada louca gemendo sem calcinha. Pegava uma bolinha de cachorro brincar, aquelas com superfície texturizada, e colocava ela entre a quina da máquina e a minha vagina, mais pra cima um pouco pra estimular o clitóris. Quando a máquina ia parando eu suspirava, a roupa torcida e centrifugada, eu encharcada e exausta. Só uma máquina pra satisfazer meu desejo.

Mandei a máquina embora junto com os móveis. 

Vinte e cinco anos que meu homem morreu. Uns vinte que comecei a abrir mão das coisas e fui despachando.

Fiquei com a bolinha mordida de cachorro. Na verdade, era uma cadela, robusta e forte, morreu pouco depois do dono. Às vezes, uso a bolinha: sento em cima dela e esfrego o ânus naquelas protuberâncias leves.

Foi o que fiz na boca daquele homem ali na minha sala, fiz ele deitar na esteira e sentei na cara dele. Aquela língua foi subindo e fui sentindo uma coisa inteira. Quando percebi, estava agachada como cadela fêmea quando mija, e aquele homem chupando o meu cu. Gostei tanto que virei de lado pra ele chupar meus lábios. A cada lambida aquela língua parecia crescer e ir além da última lambida. Eu me sentia mais e mais profunda.

Quando partimos ao sexo casual, queria voltar às peripécias que me lembravam as minhas masturbações. Encostei as costas na parede. Ele veio pra cima me beijando com aquela língua que já me conhecia por dentro. Se iniciava naquela hora a preparação pra futura penetração. Brincamos demoradamente com aquele pênis que permanecia calmo e flácido. Confortável na minha boca, eu o chupava e lambia-o junto do seu testículo. Só o da direita, porque já havia sido comentado que ele tivera um câncer e tivera que fazer a retirada do testículo onde o tumor se desenvolvera. Nossas conversas eram sinceras e sem receios, também comentei sobre o câncer que tive, ainda muito cedo aos 38 anos; foi no ovário e quando descobri já estava se espalhando, então tive que extrair os ovários, as trompas e o útero.  A gente não precisava se explicar muito.

A gente nasce num corpo que ainda não está feito, e é a gente que o constrói no que adicionamos ou extraímos dele. O corpo acaba por se formar no que vivemos, ele se delineia no passar das neblinas. É o tempo que constrói o corpo.

Aqueles olhos me miravam como um touro que disparará em ataque. As mãos procurando avivar o membro fálico, a dele e a minha. O músculo de preenchendo de sangue aos poucos, as veias engrossando de denso sangue antigo. Canais sendo tomados pela vinda dos tempos de chuva.

O sexo tardio possui todos os seus possíveis benefícios, a demora da ereção oferece tempo pra descobrir que os olhos que te olham te desejam, enquanto a carne de um corpo vai se ajeitando à carne do corpo do outro, o encaixe vai se aperfeiçoando. Relaxados, os músculos se soltam e os orifícios não temem ou recuam ao toque. O pênis que tarda a endurecer, quando duro, já ensaiou todos os caminhos que trilhará. Será certeiro e conciso; e calmo, pois sabe que pressa não oferece o deleite da preparação.

A idade traz ao corpo um peso e uma densidade que obrigam a justificação de cada movimento, não é como o corpo jovem que não sabe o que faz e faz tudo porque não sabe o que fazer; cada articulação  acionada possui um objetivo definido pelo idoso que o guia.

Aquele corpo entranhado no meu, denso, pesado, impedindo a respiração minha e dele. O corpo velho possui a confiabilidade do terreno assentado, não é preciso temer a fuga após a transa.

O corpo velho é confiante e vasto. Não teme e não foge ao gozo.

O corpo jovem é instável e vacilante; porém necessário para desenvolver a experiência e os seus truques, pegadas e jeitos; mas, acima de tudo, o corpo jovem é uma flor despencada no abismo; a fugacidade dada à morte; a beleza que se ceifa a si mesma. O corpo velho é o corpo jovem que aprendeu a viver e a driblar a morte inerente a si.