Saroba Véi

Bruno Borges

Jorrada de catarro. Esse era Joaquim Saroba, um miúdo de um homem, de corpo largo e grosso, só não mais largo que suas mãos e seus pés carcomidos. Pisava na terra tão seca quanto seu carcanhar rachado, seguidos de dedos grossos e chamativos quase sem unhas. Atrás de suas canelas, haviam batatas tão grandes que alimentava toda uma família em uma janta. Coxas fortes prostravam abaixo de uma cintura de bacia comprida, com um glúteo, forte, porém não definido. Não era gordo, muito pelo contrário, suas forças cresciam para os lados, sua barriga quase linear era bastante espaçosa, parecia uma a ponta de uma enxada. Se bem, era quase tão dura quanto. Seus peitos, agora, pela idade, já caídos, são fortes, mas se escondem em partes atrás de uma barba negra enclarecida através dos anos. Sua cara fechada adornada de rugas continham dois olhos escuros que se afugentavam atrás das sobrancelhas peludas que protegiam, entre elas, uma nareba bem aberta. Seu cabelo, agora, é ralo, não era calvo, mas muito menos careca. Esse miúdo homem forte de braços largos era o Seu Saroba. 

Seu Saroba nasceu no ventre seco da terra, desde que se conhece tra balha com sua mãe, arando-a, semeando-a e cavando-a. E, por isso, suas mãos engordaram e seu lombo se tornou escuro, mas de bunda mulata. Criou uma profunda relação com o sol, com as entranhas da terra e com a secura do ar. Passou anos de sua vida assim, na terra. Perdeu pai. Perdeu mãe. Trabalhou na terra em que eles também trabalharam. Adulteceu, apaixonou e se casou. Uma linda paixão. Dentro daquele homem forte de cara fechada para o mundo, entre quatro paredes, sabia amar bem uma esposa, matava e morria por aquela mulher. Amou-a mais quando ela lhe deu filhas, três pequenas querubinhas concebidas em três pequenos anos. Sua vida agora era resumida por essas quatro mulheres. Trabalhava para dá-las da melhor comida, das melhores roupas e do dinheiro mais limpo e honesto. 

Em um dia de chuva no laranja, Saroba perdeu sua mulher. Morrera de uma febre muito alta. Nenhum padre e nenhum curandeiro conseguiu consertá la. Deixou-o sozinho com as três amorinhas. Elas cresciam, Saroba vez ou outra contava-as histórias de sua falecida esposa, mas com o tempo eles não se lembravam mais como era sua voz, seu rosto e seu cheiro de canela. Ou de cravo? Fato é que apesar de apagados os detalhes da mulher, o amor por ela e sua essência jamais foram perdidos. Saroba não deixava macio quando o nome de sua esposa era proferido por bocas alheias, jamais deixou de matar e morrer por ela. Saroba não se casou novamente. Alguns dizem que ele nunca amou mais ninguém. 

Devido a uma arrendação da terra onde trabalhava, Saroba teve de mudar. Mudou para uma cidade não longe dali, agora nas terras de um outro corno perdido. Em uma pequena casa Saroba e suas três filhas transferiram suas vidas. Suas filhas agora já eram moças e o pequeno Saroba diminuía cada vez mais. Pela idade e pela curvatura acentuada que sua coluna adquiria. 

As bordas dessa pequena cidade crescia devido a uma fábrica montadora de automóveis que ali tinha se instalado fazia pouco. Saroba ficava perto do limite da borda, não andava muito para chegar à sua terra de trabalho. Era a primeira vez de Saroba e suas filhas em uma cidade de verdade. Inquieto, Saroba fez poucos e raros amigos. Conheceu, entretanto, um engenheiro que prestava serviços para a montadora. Carlos. Inteligente como um mico, dizia Saroba sobre Carlos. Saroba, analfabeto de pai e mãe, embasbacava-se com qualquer frase que Carlos criava. Saroba não entendia nada que Carlos falava, e Carlos entendia muito menos o que Saroba falava. Carlos fala todo trocado, dizia Saroba, fala diferente e veste engraçado. Ele sabe de tudo: qualquer árvore, qual a época de cada semente, toda espécie de cobra, como pescar qualquer peixe, dizia Carlos em seu êxtase didático. 

Saroba descobriu que na cidade, os pais de moças parecem não gostar de suas filhas. Essas meninas não saíam, ficavam emprostradas em suas casas, porque os homens que lá chefiavam tinham medo delas "se perderem no mundo". Como é que pode, ô Carlos, você que é um homem esperto, indignava o miúdo homem. Saroba, muito diferentemente, amava suas filhas, e sabia que elas gostavam de perambular sertão afora. Saroba matava e morria para dar a elas uma vida feliz. E esse jeito de amar do homem espalhou pela cidade. Via-se e vivia-se com as filhas do pequeno homem andando pelas ruas, conversando nas praças, em cima das árvores ou a caminho do rio. E o jeito amável e ingênuo das garotas atraíam as mais diferentes pessoas, desde crianças a jovens ou idosos. Por esse motivo, a fama de Saroba e suas filhas era conhecida por todos os habitantes. Por onde qualquer um desses três andava, era sempre um festival de mal olhares, maldizeres e maltrapilhos. Sempre nas sombras, escondidos, embaixos dos seus chapéus, perdidos na névoa de seus paieros. Nunca se incomodaram. Ele tinha uma outra fama que rodava pela cidade. Apelidaram Saroba de Saroba Véi e quando alguém fosse se referir a ele e suas filhas desgarradas falavam apenas Saroba Véi, como se fosse duas palavras que nasceram juntas. 

Em um escaldante dia qualquer, Saroba, saindo de sua casa para trabal har, vê, pintado de preto em seu muro, alguma coisa enorme escrita. Quase todo seu muro era tomado por aquele trem. 

- Mas que diabos!? Esse muro é meu não é? - indignado, Saroba esbrave java. Sua pergunta não foi retórica, Saroba rodeou sua casa de cabeça baixa e sobrancelhas cerradas - Mas esse muro é meu, uai.- Concluiu o homem. - Como assim fizeram isso? 

Saroba sabia que ali tinha algo escrito e para saber o que se tratava chamou Carlos. 

- Devem estar querendo me dizer alguma coisa. Mas ô, Seu Carlos, todo mundo aqui sabe que eu num sei ler. Podia era ter vindo pra mim mesmo e falado, uai. - disse Saroba, agora mais acalmado, imaginando que talvez isso fosse algum costume da cidade. 

- Acredito que tenham vandalizado o muro de sua casa, Seu Saroba. - coçando o queixo com uma feição empática. 

- Saroba Véi - ele não gostava que Carlos o chamasse de Seu Saroba, já havia acostumado com Saroba Véi, e gostava que o apelido ficou, pois encaixa muito bem na boca. 

Assim, Saroba descobrindo o que é o ato de vandalismo no coração da cidade, embraveceu de novo. Como alguém podia fazer uma coisa só pelo prazer da maldade? Mas é muita falta do que fazer. Dizia na minha frente, uai. Tem medo do velho Saroba Véi? Vou colocar logo duas balas no muro dele. 

Chegando na casa da vítima, Carlos fechou a cara e Saroba disse. 

- Então homem, o que tá escrito no meu muro? - disse o pequeno confuso olhando para o muro com as duas mãos na cintura. 

- Olha Seu Saroba, por que não o senhor apenas pinte o seu muro por cima disso aí? Eu devo conseguir a tinta dessa mesma cor sem problemas. 

- Primeiro que é Saroba Véi. E depois, ora homem, eu quero saber o que estão me dizendo antes. Fala! Anda, não amola não. 

- Mas é porque, Seu Saroba, é inconveniente... De mau gosto, de sagradável. A gente pode simplesmente pintar por cima, eu ajudo o senhor 

- Carlos, eu não me seguraria em colocar essa sua cara beijando o chão não, homem. Só fala logo! 

- Tudo bem, Seu Saroba, vou ler para o senhor. - Respirou fundo, fechou os olhos - Mas antes, saiba que não sou eu quem estou falando isso, é só o que tá escrito. - Expirando e abrindo os olhos disse - Seu Saroba, tá escrito: "Nessa casa todo mundo dá". - arqueando as sobrancelhas, com sua velha cara de empatia. 

Saroba enrubesceu. Suas rugas nunca foram tão proeminentes, fechou seus dois punhos e gritou. Amaldiçoou toda aquela cidade arretada. Um bando de mula que nem cruzar sabia. Foi-se acalmando a medida que perdia a capacidade de assimilar as pessoas a animais. Por um momento nem gritou mais, apenas olhava para seu muro com aqueles caracteres desconhecidos que maldiziam sua pessoa. 

Gozado, pensava Saroba, ele nem ler sabia, para ele tudo aquilo não passava de algum tipo de desenho. Porém, para outros, aquilo significava alguma coisa. E, mesmo assim, uma pessoa qualquer escreveu no muro dele, para que os outros lessem algo sobre o próprio Saroba. O dono do muro. Que não sabe ler. 

Talvez a palavra que Saroba procurava era covarde, mas não a usava muito. Pois todos aqueles que ele considerava covarde, não havia muita conversa, a sua resolução era resolvida em ações. Manso é remanso. Saroba era mesmo correnteza, e quem ousasse atravessá-la ou afogava ou peixe comia. 

- Sinto muito pela sua situação, Saroba Véi. Amanhã eu vejo pra con seguir a tinta da cor do seu muro e trago prontamente. 

Saroba cuspiu. 

- Você fica é aí mesmo. - disse Saroba entrando para sua casa com passos firmes que levantavam mais poeira que cavalo apressado. 

Carlos cruzou os braços e tinha medo do que Saroba estava prestes a fazer. Tinha noção da honra que ele carregava consigo. Ele tem uma imagem a zelar, certamente não vai deixar que isso saia impune. Carlos temia que saroba saísse daquela casa com duas espingardas e falasse para os dois caçarem quem quer que tenha feito aquilo. Temia pela forma que ele faria essa caça, o que faria quando encontrasse o vândalo, se iria torturar, iria deixá-lo ter últimas palavras, pegaria de surpresa? Não, Saroba é muito honrado para fazer qualquer ataque surpresa. Mas, olho por olho. Ninguém o avisou que escreveria aquilo em seu muro. Não seria desonra nenhuma revidar sem aviso prévio. Deixaria suas filhas ver aquilo? Sabia o quanto o homem amava aquelas moças. Pensava se ele deveria ajudar Saroba em sua busca frenética pelo odioso vândalo. Carlos nunca puxara um gatilho antes. Será que ajudaria só por Saroba se mostrar um grande amigo? Ele entenderia se Carlos recusasse ajudá-lo? 

Após dois minutos de tensão mental de Carlos, Saroba volta. Pisando tão forte quanto saiu, segurava duas latas de tinta, uma em cada mão, e uma trincha pendurada em cima. Carlos olhou para baixo, para a cara do velho, surpreso com o desfecho que Saroba levou a situação. 

- Que ótimo, Seu Saroba. Eu posso ajudar o senhor a pintar o muro, seria um prazer. Depois podemos tomar um café em minha casa. Mas uai, vai querer mudar a cor do seu muro? 

Saroba segurava duas latas de tinta preta. 

- Ô Carlos eu agradeço muito a sua ajuda, mas dessa vez vou poder ajudar você não. Só você pode fazer esse serviço aqui. - Saroba falou isso ainda com a mesma irritação e energia que havia saído. 

Carlos tremeu. 

- Como assim? Você tem só essa trincha aí? Eu devo ter mais uma lá em casa. 

- Não é isso não, cabra. O que tá escrito aí mesmo? - Saroba aqui já mordia os lábios, olhou para o muro e soltou as tintas - É "Aqui nessa casa todo mundo dá" né? É isso, não é? Pois bem, escreve aí Carlos - gritando, Saroba aponta para cima - "DE MENOS O SAROBA VÉI". 

Carlos não disse nada, arregalou os olhos e abriu a boca. Não conseguia dizer nada. Apenas continuou olhando para baixo para Saroba, com aquela careta de peixe pacu. 

- Tá esperando o que, homem? Escreve "de menos o saroba vei". Ha. "Aqui todo mundo dá". Pois não dá mesmo, porque o Saroba Véi aqui nunca deu, não dá e nunca vai dar. Agora, qualquer outra pessoa aqui que dá, pois que dê. Mas agora, dizer que o Saroba Véi aqui dá? Isso é uma mentira e das muito mal contadas. 

Carlos ainda não disse nada, estava tão impressionado que nem mudar sua feição conseguia. Já estava com aquela expressão fazia alguns minutos. Talvez estava quebrando algum tipo de recorde de careta mais duradoura. 

- O que foi, homem? Tá querendo me assustar com essa cara lambida? Vamos, escreve. 

E Carlos escreveu. Escreveu "de menos o saroba velho" abaixo, um pouco mais a direita da outra frase. Escreveu pequeno para que coubesse bem encaixado no resto de muro. Depois de escrito, Saroba perguntou se as palavras estavam certas. Riu. E Carlos viu em seu rosto uma pessoa orgulhosa. Cuspiu. Olhava para o muro com o sorriso mais malicioso. Estava de nariz em pé, crente por todos os santos que tinha saído por cima da situação. Sabia que aquilo fora seu grande trunfo. 

E essa frase ficou naquele muro, sem qualquer alteração por dias, semanas e anos à fio. "Nessa casa todo mundo dá de menos o Saroba Velho". Suas filhas cresceram, Saroba morreu. Morreu sabendo que partia mantendo seu nome limpo, sabia que sua imagem, sempre que fora manchada, ele mesmo ia e resolvia. Saroba manteve sua honra e sua dignidade muito bem preservada. 

Agora, no muro daquela casa, nada mais está escrito. Quando o velho morreu, e sua família se perdeu cerrado afora, uma outra família ocupou aquele lugar e, vendo aquilo escrito, nada para eles significava, assim como foi de início para Saroba. Mandaram pintar aquele muro de uma outra cor. O nome do velho, o ataque ao seu nome, e sua gloriosa vingança todos foram esquecidos. 

Entretanto, naquela terra, onde o velho cuspiu de ódio, certamente nasceu um belo cravo.