PERSUASÃO (2022): adaptação de Jane Austen, realizada pela Netflix, aposta na modernização dos diálogos e na centralidade da trama romântica.

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Cartaz do filme "Persuasão"

Se você é uma daquelas pessoas apaixonadas por literatura, uma certeza que se pode ter é que, em algum momento, a obra da consagrada Jane Austen irá cruzar o seu caminho. Vários são os meios que podem te levar a conhecer a autora: o gênero romance, a ambientação no século XIX, o apreço por clássicos, o interesse no contexto de escrita, dentre muitas outras motivações. Afinal, o que importa verdadeiramente é que esse contato aconteça em algum momento, independente de qual seja a origem dele.

            No entanto, se você não é um grande fã dos livros, mas é um cinéfilo de mão cheia, temos uma boa notícia para você: recentemente a obra Persuasão, uma das mais famosas histórias de Austen, foi adaptada para filme, e é justamente sobre ela que falaremos na nossa matéria. Mas, antes de mais nada, é preciso conhecer um pouco mais sobre a vida dessa grande escritora.

            Jane Austen é uma autora britânica que viveu entre os anos de 1775 e 1817, e podemos dizer que sua vida é uma prova de que para se falar de amor não é preciso, necessariamente, viver o amor, já que a autora nunca se casou. De acordo com Warley Souza (Brasil Escola),  sua obra é enquadrada na transição entre o romantismo e o realismo inglês. Em geral, apesar de ter o romance como o tema central, existe outro aspecto de sua escrita que merece destaque: o retrato da sociedade da época (SILVA, 2021) – contendo críticas sociais, muitas vezes originada do tom irônico que permeia a obra – com destaque para o modo de vida das mulheres da época.

SOBRE O FILME

            Persuasão conta com três adaptações, uma de 1995, outra de 2007 e agora a de 2022, que estreou em julho na Netflix, e é dirigida por Carrie Cracknell. Tais readaptações se justificam não apenas pela relevância da obra de Austen, mas também pela ironia de sua escrita, e pelas histórias contidas em suas entrelinhas, permitindo diferentes interpretações e traduções para o cinema. Neste novo longa-metragem, a primeira característica proeminente é a iluminação, que contribui para um aspecto bem claro na grande maioria das cenas. Além disso, a qualidade das filmagens é elevada, o que contribui para uma ótima fotografia durante todo o filme.

            No princípio do filme, temos a nossa protagonista, Anne Elliot, apresentando sua vida e sua família, dirigindo-se diretamente ao espectador em uma quebra da quarta parede, o que pode ser interpretado como uma tentativa de buscar a identificação do público com a personagem. Essa ferramenta, no entanto, vai sendo deixada de lado conforme o enredo vai se desenvolvendo e a protagonista começa a viver os acontecimentos propostos. Assim sendo, por mais que para algumas pessoas esse tipo de abordagem seja indesejado, fato é que ele colabora para a imersão na história. Ainda, os cenários e figurinos também são bem adequados e, em geral, respeitam as características da época. No entanto, para olhos mais atentos, é possível perceber alguns furos, como a utilização de papel sulfite, item que não condiz com o século XIX.

            Por fim, é possível afirmar que o filme passa por todos os períodos da trama original, entretanto, a impressão que fica é de que seriam precisas mais algumas cenas para o público abraçar verdadeiramente a história. Apesar da duração de 1h49min, o que faz dele um filme relativamente longo, esse tempo parece curto para apresentar o enredo de modo que o espectador consiga se conectar de fato com os personagens.

DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS COM O LIVRO

            Ainda que o enredo amoroso seja bastante similar ao do livro – apresentando a narrativa da segunda chance dada à relação de Anne Elliot e Frederick Wentworth –, não é possível dizer que o filme é fiel ao romance. Isto porque, segundo Genilda Azerêdo (2013, p. 16 - 17), os livros de Austen têm como característica principal a presença da história político-social de seu período engendrada nas entrelinhas da vida cotidiana. Desse modo, escolher retratar apenas o romance, como fez a nova adaptação da Netflix, retira parte importante da história contada pela autora e esvazia seu significado político.

            O filme parece ter tentado restabelecer a crítica de Austen ao casamento – ainda assim deixando de lado sua tão característica defesa pela educação feminina – por meio de falas de Anne Elliot que questionam a validade dessa instituição, mas com um tom moderno. Ao passo em que no livro essas críticas se endereçam ao caráter econômico relegado ao casamento no século XIX – sendo a mulher tratada como mercadoria –, o filme foca na suposta garantia de felicidade feminina através dele. Tal crítica é válida, mas, além de anacrônica – uma vez que amor e felicidade não eram considerações para o matrimônio da época –, causa certos problemas neste roteiro que optou por ampliar o drama romântico. Exemplo disso é o diálogo final entre Anne e o Capitão Harville: enquanto no livro a protagonista critica a ideia de inconstância feminina tão difundida na sociedade da época, e usa seu amor incondicional a Wentwhort como contraexemplo, no filme sua fala tenta convencer o capitão de que o amor das mulheres é mais duradouro que o dos homens, porque o feminino está intimamente ligado ao romance. Ora, se nas falas modernas de Anne ela não quer associar a realização feminina ao casamento, qual é o sentido desse diálogo final? A modernização das falas da protagonista faz, portanto, com que suas atitudes se tornem incompatíveis com o seu pensamento.

            Neste ponto, vale salientar que a maior diferença entre o livro e o longa-metragem é a construção da personagem de Anne: de uma mulher introspectiva, de força interior e, por vezes, melancólica, ela passa a outra extrovertida e de personalidade mais juvenil. A alteração das características formantes da personagem provém, principalmente, das cenas em que Anne brinca com os sobrinhos – sujando-se de comida ou de terra, o que o caráter sério da Anne do livro não permitiria – e pela inserção de frases millenials como "agora éramos pior do que estranhos, éramos ex" ou “ele [Mr. Elliot] é um dez, eu nunca confio em um dez”. Tais recursos introduzem comicidade, mas esta é diferente daquela presente no livro, que provém da ironia crítica aos costumes e hipocrisias da classe dominante da época. Mas, com a preferência pelo enredo romântico em detrimento do social, essa mudança da personagem não traz problemas ao fio narrativo, ainda que tenha desagradado muitos fãs do romance.

            Apesar disso, a reconstrução da relação de Anne com as irmãs Musgrove, no filme, acarreta um grande furo na trama principal. Estas, que no romance tinham uma relação leve e cordial, passam a ser melhores amigas, quase cúmplices, uma vez que Louisa Musgrove revela mais de uma vez seus sentimentos à Anne. Segundo Marcela Brigida (2022), essa mudança pode ser entendida como uma tentativa de anular a rivalidade feminina – novamente, um conceito moderno –, já que, sendo amigas, não há disputa ou estranhamentos entre Anne e Louisa pelo amor de Wentworth; elas conversam e Anne deixa que Louisa aproxime-se dele. Contudo, se essa amizade é tão forte, por que a jovem Musgrove não escreveu a Anne contando sobre seu noivado com Benwick? Caso a carta fosse escrita, a revelação final – de que Wentworth estava apaixonado e livre para casar-se com a senhorita Elliot – não existiria. Desse modo, a amizade criada para o filme não faz sentido se pensarmos no plot amoroso.

            Em contraponto, a maior semelhança entre o livro e o filme é a personalidade dos membros da família Elliot – à exceção de Anne. Essa manutenção é essencial para que o espectador entre em contato com a pequena burguesia inglesa do campo, fortemente criticada por Austen, em razão de suas contradições e hipocrisias. É por meio da vaidade exacerbada do pai e da irmã mais velha de Anne que a família liquida suas economias e vai a encontros para paparicar a nobreza. Também, é por conta do egoísmo de sua irmã Mary que todos da casa se curvam à sua vontade. Frente a isso, igualmente é mantida a abnegação de Anne, que, apesar de se diferir da família pela índole e moral, sempre tem de deixar suas vontades de lado. Tais características familiares também são trazidas para o século XXI, uma vez que Mary se descreve como “empática” para justificar o fato de não querer cuidar dos filhos, bem como defende o “autocuidado” a fim de mascarar seu individualismo – o que, atualmente, descreveríamos como “positividade tóxica”. Nesse sentido, a modernização aproxima a realidade daquele período ao nosso, podendo ser bem quista entre os espectadores.

            Logo, ainda que muitas críticas tenham sido feitas ao incremento millennial na nova adaptação da Netflix, isto por si só, não é um problema. Uma das mais bem sucedidas adaptações de Emma, outro romance de Jane Austen, é o filme “As patricinhas de Beverly Hills”, que não só teve grande repercussão em sua estreia, como também influencia até hoje, 20 anos depois de seu lançamento, a moda e a cultura pop. Mas, este atualiza não apenas os diálogos da trama, como também todo o seu contexto, saindo da era pré-vitoriana para um colégio adolescente dos anos 90, de modo que as ideias apresentadas condizem com o pensamento e atitudes dos personagens. O maior erro do filme de Cracknell, portanto, é ter feito uma releitura rasa do romance de Austen, desconsiderando as pautas políticas do período ao incluir temas atuais sem atualizar também o enredo e o espaço. Ainda que uma adaptação possa e deva refletir a interpretação de seu diretor – afinal, segundo Genilda Azerêdo (2013, p. 49), a tradução do papel para a tela requer modificações –, as mudanças exigem reflexões e algumas, se mal pensadas, podem tornar o filme menor do que sua obra de inspiração.

AFINAL, O LEITOR DEVE OU NÃO ASSISTIR AO FILME?

            Para formar uma opinião concreta, é sempre necessário que o leitor veja a obra por si e construa suas próprias opiniões, que podem ser contrárias às da resenha, ou não. O que se pode afirmar com certeza é que, na adaptação de Carrie Cracknell para a Netflix, o romance de época de Jane Austen – que, por ser de época, envolve as questões históricas do período em que foi escrito – parece ser mais uma comédia romântica com temática vitoriana. Isto apenas não faz dele bom ou ruim, mas deixa já determinado o público para o qual foi pensado: os jovens que não conhecem a obra de Austen, seja por acharem-na muito distante de sua realidade, seja por não terem sido apresentados a ela. Logo, a proposta é a de aproximar esse público, por meio de pautas, frases e gêneros cinematográficos atuais, de uma obra do século XIX. Desse modo, um fã ávido dos livros de Austen ou um crítico literário podem não ficar tão contentes com o resultado final, mas alguém que não conhece a autora, ou que procura um filme leve para assistir depois de um dia atarefado, deve gostar da experiência. É preciso apenas ter em mente que, infelizmente, ele não conseguiu representar toda a magnitude do livro Persuasão.

 

Responsáveis: Bianca Dos Santos Lima e Gabriela Lima De Freitas

Revisado por Daniely Ribeiro de Melo

 

REFERÊNCIAS

AUSTEN, Jane. Persuasão. São Paulo: Editora Zahar, 2012. 360 p.

AZERÊDO, Genilda. Para celebrar Jane Austen: diálogos entre literatura e cinema. Curitiba: Editora Appris, 2013. 110 p.

BRIGIDA, Marcela Santos. “Resenha: Persuasão (Netflix, 2022)”. Rio de Janeiro: Literatura Inglesa Brasil, 2022. Disponível em:< https://literaturainglesa.com.br/resenha-persuasao- netflix-2022/ >. Acesso em 28 de julho de 2022.

PERSUASÃO. Direção: Carrie Cracknell. Produção de Mad Chance e MRC Film. Estados Unidos: Netflix, 2022.

SOUZA, Warley. "Jane Austen". Brasil Escola. Disponível em: < https://brasilescola.uol. com.br/literatura/jane-austen.htm >. Acesso em 30 de julho de 2022.

SALGUEIRO DA SILVA, A. C. B. (2021). “Nos passos de Jane Austen: o espaço literogeográfico nos romances austenianos”. Revista Geografia Literatura E Arte, 3(2), 22-40. Disponível em: < https://doi.org/10.11606/issn.2594-9632.geoliterart.2021.188115&gt;. Acesso em 30 de julho de 2022