Jeferson Tenório fala de suas vivências como professor, pesquisador e escritor

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Jeferson Tenório 

Essa matéria não é sobre A Montanha Mágica. Mas bom, eu tinha lido A Montanha Mágica em doze dias. São essas metas absurdas de leitura que às vezes a gente se coloca e acaba cometendo alguns erros, como, por exemplo, se propor a ler A Montanha Mágica em doze dias.

O resultado foi um compreensível cansaço mental detectado na forma de estresse por minha psicóloga, que sabiamente receitou a leitura de um livro mais leve (já que a leitura de nenhum livro não seria uma possibilidade), recomendando o romance O avesso da pele, de Jeferson Tenório, que recentemente ganhara o Prêmio Jabuti. Ela não o tinha lido. Creio que este romance só pode ser considerado leve de uma perspectiva perfeitamente literal, uma vez que, com suas 189 páginas, não deve chegar aos 200 gramas. Mas o romance aborda temas pesados e densos que tiram dele essa característica da melhor forma possível.

Sejamos diretos: a matéria do livro é o racismo. Poderíamos a partir daí especificar que se trata do racismo na cidade de Porto Alegre, que, por ter uma população predominantemente branca (o Censo de 2010 do IBGE apontava que apenas 24,18% da população de Porto Alegre se identificava como negra, incluindo-se pretos e pardos, contra a média nacional de 54%), tem características específicas e é mais latente – e menos questionado – do que em outras partes do Brasil. Mas que não se engane o leitor: este não é um romance regional, e as críticas que ele traz são pertinentes à toda a realidade brasileira, sendo sua força também fruto disso.

O romance traz uma narrativa na 2ª pessoa do singular, direcionada ao pai do narrador, que é assassinado em uma desastrosa abordagem policial enquanto voltava para casa da escola onde lecionava.

Aos que venham a reclamar do spoiler – e eu também reclamaria –, deixo-o aqui justamente pela escolha do autor de colocá-lo na orelha do livro (imagino o que seu editor achou dessa escolha: contar o final antes mesmo do começo...), e garanto que saber disso mais contribui com a leitura do livro do que a atrapalha, acrescentando um caráter premonitório a certas passagens e enriquecendo o tom às vezes brutal do romance. Nas palavras do próprio autor: “Se Gabriel Garcia Márquez pode chamar um livro de Crônica de uma morte anunciada, eu posso colocar que o protagonista morre na capa.”

No livro, Pedro, o narrador (e às vezes protagonista), conta as histórias do pai, da mãe e dele próprio, passando por diversos pontos de suas vidas e abordando suas vivências como negros na cidade de Porto Alegre. O livro joga luz sobre o problema do racismo estrutural no Brasil, abordando também relacionamentos abusivos e solidão, o que traz a possibilidade (ou certeza) de qualquer pessoa se conectar com o texto, com as personagens, e com suas dores.

Recomendo a leitura, e ainda que, sim, minha psicóloga estivesse gravemente enganada sobre o peso do livro, cabe ressaltar que ele flui bem e que o leitor encontrará uma leitura prazerosa e enriquecedora pela frente.

Voltando ao começo: o livro me foi indicado, e cabia então comprá-lo. Nas economias às quais a gente se propõe na vida universitária, resolvi que o mais interessante seria pedir que meu pai o comprasse numa pequena (e maravilhosa) livraria na qual eu tinha 20 reais de crédito de uma troca, sabendo que eu me ofereceria para pagar o resto e ele recusaria, saindo o livro de graça. Se você alguma hora estiver pelo Bixiga, visite a Livraria Simples e aproveite para tomar um cafezinho – que é cortesia – enquanto bate papo com os livreiros! Ela fica na Rua Rocha, nº 259 e a Revista SarteL não está recebendo para fazer essa propaganda.

Pediu o livro, pagou o livro, e o Beto, dono da livraria, disse que o Jeferson estaria ali na terça. E meu pai respondeu: “Quem é Jeferson?”. Me mandou uma mensagem: “Comprei o livro, o Jeferson vai estar lá na terça”, e eu respondi: “Quem é Jeferson?”.

Bom, respondendo ao meu pai, a mim, e ao leitor dessa matéria, Jeferson Tenório é um escritor nascido no Rio de Janeiro em 1977. Mudou-se aos 12 anos para Porto Alegre, cenário de seu último romance e das vivências nele retratadas. Chegou a dizer em entrevista que a mudança para Porto Alegre ocasionou percepções e vivências diferentes do racismo, conhecendo lá a violência das abordagens policiais, que, no romance, resultam na morte de seu protagonista.

É formado em Letras pela UFRGS, tendo feito sua dissertação de mestrado, intitulada “Quando é ser africano: Em busca do outro pé e outros niilismos na obra de Mia Couto” pela mesma instituição entre 2011 e 2013. É doutorando pela PUC-RS.

Tem três livros publicados: O beijo na parede (2013), Estela sem Deus (2018), e O avesso da pele (2020).

Atualmente vive em Porto Alegre e se divide entre a tese de doutorado e ministrar cursos, além da escrita. Trabalhou durante 10 anos como professor de Ensino Médio, carreira que o agrada e à qual pode voltar, não descartando a possibilidade de lecionar no nível superior.

“Jeferson vai estar lá na terça.” Bom, eu também estive lá na terça, tanto para garantir o autógrafo quanto para exercitar a cara-de-pau que sempre quis ter e perguntar se ele topava dar uma entrevista. Esta, vocês conferem abaixo, na íntegra, mas, confesso, um pouco editada. Ninguém é de ferro.

           Leonardo Waack (LW): Bom, Jeferson, queria agradecer por você estar aqui com a gente da Revista SarteL hoje. Somos uma revista nova da Letras fundada por segundanistas que sentiram falta de um espaço na faculdade para divulgar conteúdo acadêmico e literário. Nesta entrevista, gostaríamos de conversar um pouco não só sobre o seu livro, O avesso da pele, que está fazendo um grande sucesso, mas também sobre a sua vivência e suas experiências como estudante de Letras.

Mas vamos começar pelo livro? Gostaríamos de saber um pouco sobre os desafios da carreira de escritor e sobre suas etapas... Então, como foi?

Jeferson Tenório (JT): Bom, a minha trajetória de escritor foi um pouco acidental. Não estava nos meus horizontes me tornar escritor; minha primeira profissão foi de professor – trabalhei em escolas públicas durante muitos anos –, e era isso que ocupava a minha vida. E a escrita vinha quando eu tinha tempo.

Começou no início da faculdade, no curso de Letras, aqui no Rio Grande do Sul. Comecei escrevendo poemas, que eu às vezes colocava em alguns concursos, e em um deles eu acabei ficando em primeiro lugar e achei que ia continuar escrevendo poesia, que ia ser poeta. Mas não deu muito certo, não conseguia mais produzir bem, e comecei a escrever contos – quando eu tinha tempo. Não era algo que ocupava muito tempo da minha vida – e acabei também ganhando alguns prêmios pra participar de antologias com os contos que eu escrevia.

Só em 2006 que eu pensei em escrever uma “novela”, não era nem um romance, era um conto mais esticado que se chamava Cavalos não choram. Ele tinha sido premiado no Concurso Paulo Leminski e eu resolvi esticá-lo. Dei para algumas pessoas lerem, me deram algumas indicações, algumas críticas, até que eu transformei esse conto, essa novela, no que seria o meu primeiro romance: O beijo na parede.

Até aí, eu não participava da cena literária, eu era desconhecido aqui em Porto Alegre, ninguém sabia que eu escrevia... Quando eu terminei o meu romance, eu mandei para algumas editoras aqui do Rio Grande do Sul – para três editoras, na verdade – e a única delas que me respondeu foi a que publicou o livro, que é a Sulinas, já no final da minha graduação. Foi aí então que eu consegui a minha primeira publicação.

O livro fez um relativo sucesso aqui no Rio Grande do sul, e um ano depois ele foi comprado pelo Ministério da Educação e foi distribuído para escolas do Brasil inteiro – se eu não me engano foram 80 mil exemplares que foram comprados pelo Governo e mandado para as escolas.

LW: Ele é um livro infantojuvenil?

JT: Então, não era pra ser. A intenção era que fosse um livro adulto, até pelas temáticas que eu abordo ali. Mas, curiosamente, a maioria dos meus leitores desse livro são adolescentes, dos 15 aos 18 anos. Publiquei em 2013 e cinco anos depois eu publiquei o Estela sem Deus. Aí nesse momento eu já comecei a equilibrar um pouco a minha atividade de escritor com a de professor, já estava quase meio a meio...

LW: Já não era mais um negócio de quando sobra tempo, não é?

JT: Não, já começou a virar uma coisa de... de obrigação, não é?

E aí veio uma repercussão com a publicação da Estela, principalmente aqui no Sul... saiu uma resenha n’O Globo também. Foi aí então que me veio a ideia de escrever O avesso da pele, era só uma ideia. Quando a Companhia das Letras entrou em contato comigo, eu não tinha o livro ainda, só a ideia. Eles pediram para que eu mandasse a ideia pra eles. eu mandei, e em seguida nós fechamos o contrato e eu comecei a escrever o livro.

Foi o livro mais rápido que eu escrevi, a escrita demorou em torno de um ano e meio, então ele foi publicado em 2020.

LW: Uma curiosidade: um contrato de um livro que ainda não existe tem um prazo muito fixo? Como funcionam as cobranças da editora?

JT: Olha, depende, depende de qual é o seu projeto literário, se faz parte de uma trilogia... Cada contrato é um contrato, até onde eu sei não tem um padrão. No meu caso, pra mim foi interessante ter esse tempo de um ano e meio, de dois anos, porque eu já tinha a história na minha cabeça. Foi diferente dos outros romances, que eu não tinha um contrato, não tinha um tempo pré-estabelecido e não sabia muito bem direito o que eu queria fazer; em O avesso da pele eu sabia o que eu queria fazer, então isso me ajudou a fazer esse livro em pouco tempo.

LW: Então O avesso da pele já estava mais ou menos criado quando você começou a escrevê-lo, foi uma questão de trabalho.

JT: É, foi uma questão de trabalho, mas também foi fruto de coisas que eu vinha pensando há muitos anos. Não quer dizer que eu comecei do zero a escrever esse romance. É difícil a gente dizer quando um romance começa a ser escrito – ele começa a ser escrito no momento que você pensa nele; e aí começa a ganhar substância, começa a ganhar vida. E eu vinha pensando nessa história já há muitos anos, então quando surge essa possibilidade de concretizar... E inclusive eu já havia reduzido o número de horas que eu trabalhava nas escolas, acho que eu ia apenas três manhãs pra escolas, então eu tinha mais tempo para escrever, o que também facilitou a escritura desse livro de modo mais rápido.

LW: O racismo é uma questão pertinente ao mundo inteiro, mas eu acho interessante que em O avesso da pele você trata ele de uma maneira muito particular à cidade de Porto Alegre. Inclusive, eu ouvi uma entrevista sua falando que você se mudou para Porto Alegre aos 12 anos de idade, e que você não tinha tido a experiência, por exemplo, de ser abordado por policiais sempre que saía na rua até chegar em Porto Alegre. O que você acha que, nesse livro, é mais geral para a realidade brasileira, e o que é mais típico de Porto Alegre?

JT: Eu acho que o racismo tem em todo lugar, não é? No Brasil, é impossível você ser uma pessoa negra e não sofrer racismo, seja em onde for. O que acontece aqui em Porto Alegre é que há uma homogeneidade da população, que é de maioria branca; a população negra aqui é minoria, principalmente se você for para o interior do estado – você vai encontrar algumas comunidades negras, mas elas estão afastadas das comunidades brancas. Em Porto Alegre você já tem 40% da população negra, mas ainda assim a maioria é de pessoas brancas. E, dependendo do bairro aonde você vai, você vai encontrar só pessoas brancas. Isso se modifica um pouco quando você vai para uma cidade como São Paulo, por exemplo, em que você tem uma sensação de diversidade. Você caminha pelo centro de São Paulo e você vê pessoas de todos os tipos, assim como no Rio de Janeiro. Então o diferente aí não é tão impactante quanto o diferente aqui. Me parece que esse é um dos fatores que levam a um racismo diferente aqui no Rio Grande do Sul, porque ele é um racismo pessoal, cotidiano, é um racismo que cerceia a sua liberdade em certos espaços – tanto que as abordagens que eu recebi, a grande maioria delas, foram feitas em bairros nobres, e isso diz muita coisa do pensamento racista que a gente tem no Rio Grande do Sul. De quem é que pode e quem é que não pode estar ali. É sempre um questionamento, do que essa pessoa está fazendo ali.

LW: E você ainda vive muito o racismo em Porto Alegre hoje?

JT: Ah, isso é cotidiano, não é? Você sair aqui na rua – ou no bairro onde eu moro, que é um bairro majoritariamente branco – dar uma simples saída num supermercado, numa loja, eu estou suscetível a sofrer racismo, então a visibilidade não me garante nada.

LW: Acho legal a gente passar agora pra questão da faculdade de Letras. O que te levou a fazer Letras?

JT: O motivo que me levou a fazer Letras é muito simples: eu gostava de ler jornal. Eu não tinha muito acesso a informação na época, nem eu nem a minha família; a gente veio pro Rio Grande do Sul e teve que morar em muitos lugares, a gente morou de favor na casa de parentes... a nossa preocupação na verdade era com outra coisa: sobreviver. Então essas informações acadêmicas eram uma coisa muito distante da gente. Em um momento, a minha mãe disse que eu tinha que fazer uma faculdade e que ela ajudaria a pagar, e eu não sabia muito bem o que fazer. Até que um dia eu ouvi dizer que o curso de Letras era um lugar onde se lia muito, e eu tive o seguinte raciocínio: bom, eu gosto de ler jornal, gosto de ler notícias, então me parecia que o curso de Letras era um lugar que eu ia gostar pelo simples fato de gostar de ler. Então eu posso dizer que eu fui parar no curso de Letras meio de paraquedas, porque quando eu entrei no curso de Letras eu me deparei com um mundo que eu desconhecia. E aí nas primeiras disciplinas eu já fui apresentado a Shakespeare, Cervantes, Dostoiévski, toda essa literatura canônica ocidental que eu nunca tinha ouvido falar – e ali eu descobri um novo mundo. Então, a entrada na universidade foi crucial pra mim. Ali que eu fui entender o que se fazia no curso de Letras, entendi que eu podia fazer bacharelado e licenciatura, que eu podia ser professor, mas isso tudo aos poucos. Foi um mundo que se abriu pra mim quando eu entrei na faculdade.

LW: Mas então entrando na faculdade você não tinha uma ideia do que você queria fazer com aquilo?

JT: Não, foi mais uma coisa de família de periferia, assim: você precisa ter um diploma, mesmo que a gente não saiba muito bem pra quê ele serve, você precisa entrar na universidade – e foi desse jeito que eu entrei.

LW: E no que diz respeito ao curso, o que mais despertou o seu interesse? Você falou do contato com a literatura canônica, mas como foi se moldando o seu estar dentro do curso na UFRGS?

JT: Eu entrei primeiro em uma faculdade particular, nas Faculdades Porto-Alegrenses. O vestibular para mim era uma coisa muito distante, mas o que me encantou mais foi a docência. Essa possibilidade de dar aula foi algo que me deixou muito impactado, não foi nem a literatura, foi essa vontade de dar aula, e a vontade de dar aula me deu vontade de ler, de conhecer mais, de comprar livro, de ter uma biblioteca... E foi isso que me causou um problema também: eu não conseguia mais pagar a faculdade, porque o dinheiro que eu ganhava trabalhando eu gastava em livros. Eu já estava há quatro anos, faltando só um ano pra eu me formar, quando chegou o momento que a secretaria da faculdade me chamou e disse que se eu não pagasse aquele semestre eu não poderia mais continuar. E aí eu tive que tomar uma decisão de fazer ou não o vestibular da Universidade Federal. Não era nem pelo fato de querer entrar numa federal, era porque eu não ia pagar e ia poder continuar comprando livros. E foi isso que eu fiz, fiquei estudando durante um ano e aí entrei pelo vestibular na Universidade Federal, e fiquei mais 4 anos lá dentro.

LW: Então você fez quase duas vezes a faculdade de Letras.

JT: É. Tanto que quando eu entrei na federal eu já tinha uma carga de leitura que era muito grande, não é... Impressionava alguns professores, alguns colegas, porque eu tava no primeiro semestre, mas já tinha uma carga de leitura bastante grande.

LW: Acho que seria interessante – sobre a graduação – saber da sua experiência dentro do curso de Letras, as diversas áreas. Não sei como funcionam as habilitações em línguas e linguística na UFRGS, fiquei me perguntando.

JT: Olha, também foi tortuoso esse caminho. Como o número de vagas era maior, entrei no bacharelado na UF, bacharelado em Letras - língua inglesa, e fiz mais dois anos, até que ficou insuportável pra mim, porque eu queria as cadeiras da docência, né. Daí eu fiz vestibular de novo para passar do bacharelado para a licenciatura, e dessa vez eu fiz pelo sistema de cotas raciais – no primeiro ano, em 2008 – e aí, quando eu entrei no curso de licenciatura, eu pude fazer o que eu queria, que era língua portuguesa com ênfase em literatura portuguesa. Fiz algumas cadeiras de francês e de inglês, mas a minha habilitação é em literatura portuguesa e língua portuguesa. E daí a docência foi entrando. Eu sofri muito com essa parte mais técnica da gramática: a gramática tradicional, a sintaxe, pra mim eram cadeiras técnicas demais, eu sofri bastante. E a linguística... eu fiquei quase tentado a me tornar um linguista. Tinham algumas áreas da linguística que eu gostava bastante, tanto que o meu TCC é uma interface entre a linguística e a literatura. Eu estava bem dividido quando eu terminei.

LW: Qual o título do seu TCC?

JT: A poética do dizer: o professor contador de histórias na sala de aula.

LW: Que bacana! Já estava com um pé na docência também, né?

JT: Já estava com um pé na docência.

LW: É, a gente percebe na Letras-USP uma marginalização muito grande do curso de Letras, que é o maior curso da USP, e estamos com dificuldades de achar sala, foi o curso que mais demorou para voltar pro presencial, tivemos uma semana à distância, tem classes que ainda não voltaram... E ficamos pensando se isso é uma coisa do curso de Letras, se é pelo fato de que formamos professores e os professores é que são marginalizados e o curso é marginalizado como consequência ou se a sua vivência foi diferente no Rio Grande do Sul.

JT: Não, a reclamação é a mesma, não é? Se você for pegar os prédios de Ciência da Computação, que tem uma parceria, obviamente, com empresas privadas, você tem uma injeção de recursos. O curso de Letras, de Filosofia, de Geografia, os prédios nos quais eu estudei tinham goteiras, porta quebrada... Você vê que há realmente um descaso com essas áreas que não dão um retorno imediato financeiro pra universidade. Então me parece que isso acontece em todos os cursos de licenciatura, não é?

LW: Você só deu aula em escola pública?

JT: Não, eu dei 20 anos de aula, né, 10 anos foram em escolas públicas, e os últimos 10 anos foram em escolas particulares.

LW: Hoje você ainda dá aulas em escola?

JT: Não, hoje o que eu dou são cursos, oficinas, que eu tenho dado desde o ano passado, mas eu saí da sala de aula na metade do ano passado.

LW: Você disse que se interessou muito pela área da docência logo no início da faculdade: você tem intenção de ser docente em universidade?

JT: É uma coisa que eu me pergunto: o que fazer daqui pra frente? Porque viver de escrita é muito difícil no Brasil. Eu já tive oportunidade de trabalhar dando aula na graduação e na pós-graduação, mas eu gosto da sala de aula do ensino básico também, que é uma outra relação, não é? Mas eu acredito que em breve eu estarei na sala de aula, ou de alguma universidade ou do ensino básico – eu sinto que a sala de aula faz parte do meu processo de escrita: eu preciso da sala de aula para continuar escrevendo, é isso que eu sinto.

LW: Bom, o seu mestrado você fez sobre o Mia Couto, sobre o livro O outro pé da sereia.

JT: É. Um diálogo, na verdade, entre o Nietzsche e o Mia Couto.

LW: Eu queria saber quanto desse contato com o Mia Couto e outros autores africanos você teve na faculdade.

JT: É, o Mia Couto talvez tenha sido o primeiro autor africano com o qual eu tive contato; lembremos que no início dos anos 2000 você não ouvia falar de literatura africana, era visto como uma coisa exótica. O contato com a literatura do Mia Couto teve para mim um grande impacto, ter conhecido aquela linguagem, aquela cultura... Eu comecei a estudar o Mia Couto, e a literatura angolana também, com Pepetela, [José Eduardo] Agualusa, e foi aí que eu comecei a me inserir em grupos de pesquisa na UF, geralmente voltados para essa temática. Então, tanto a minha graduação quanto o meu mestrado foram meio que girando em torno da literatura do Mia Couto, dessas questões pós-coloniais, eu fui moldando a minha pesquisa para esse assunto.

LW: Inclusive, achamos o link para o seu mestrado, queríamos saber se podemos colocar no site!

JT: Ah, acho que como curiosidade! Sim, foi um mestrado em que eu achei que eu poderia ter aprofundado mais algumas questões, mas, enfim, mestrado é isso, você não tem muito tempo, mas eu acho que como curiosidade é interessante.

LW: E há quanto tempo você está fazendo o seu doutorado?

JT: Já finalizei. Eu defendo agora quarta feira [30/02/2022], e foi melhor, do que o meu mestrado, obviamente, você tem mais tempo para aprofundar o tema. O tema é a representação paterna nas literaturas luso-africanas – não entrei nas questões psicanalíticas, né, a minha questão era mais de ordem cultural e literária, então foi um trabalho que me deu bastante prazer em fazer.

LW: Nos cinco minutos em que conversamos [na sessão de autógrafos], eu lembro de perguntar se você morava em São Paulo e você responder “Ainda não”. Você tem a intenção de vir pra São Paulo, ou acaba sendo uma necessidade por causa da produção?

JT: Eu fui pra São Paulo a primeira vez em 2012, já faz 10 anos. Foi uma cidade que eu me apaixonei, gostei muito dos lugares que eu visitei, a cena cultural é muito forte... É uma cidade em que eu me sinto muito à vontade, tenho um valor afetivo, sempre quero ir pra São Paulo. É engraçado porque às vezes eu tenho a impressão de que eu tenho muito mais amigos em São Paulo do que aqui em Porto Alegre. Então pra mim, nesse momento, me parece que é, além do valor afetivo, essa possibilidade de ter mais contatos, ter mais trabalho, e Porto Alegre acaba ficando um pouco isolada nesse sentido.

LW: Bom, eu gostaria de pedir uma recomendação: para me preparar para essa entrevista eu ouvi alguns podcasts – eu pesquisei “Jeferson Tenório” no Spotify e acabei encontrando alguns interessantes, como o da Companhia das Letras, o do Daria um Livro, e eu queria saber se você recomenda alguma entrevista que você tenha feito, para quem quiser te conhecer melhor e acha que não foi o suficiente aqui!

JT: Nossa, é difícil, assim. Mas acho que a que eu conversei com o Pedro Pacífico foi um podcast legal, o da Companhia das Letras também é um podcast legal, e é um pouco mais curto; mas acho que tem um também que eu dei pra Universidade Federal do Rio de Janeiro, pra Beatriz Rezende – mas acho que não é um podcast, é impresso, mas se você procurar “Beatriz Rezende” e o meu nome vai aparecer essa entrevista. Foram vários entrevistadores e acho que umas duas horas de entrevista, então está bem esmiuçado assim.

LW: Ah, que ótimo, assim dá pra conhecer melhor o autor! Os seus outros livros são fáceis de achar?

JT: Ficarão! Porque em agosto será relançado o Estela sem Deus e em dezembro O beijo na parede.

LW: Ah, perfeito! Então já fica a indicação pra quem quiser ler! De qualquer forma muito obrigado pela entrevista, Jeferson. Gostaria de saber se você acha que tem alguma coisa que faltou perguntar, algo que você queira acrescentar...

JT: Não, você foi ótimo, as suas perguntas foram muito boas!

LW: Muito obrigado!

JT: Um abraço, tchau-tchau.

            Para tornar as falas de Tenório ainda mais completas, ampliando o repertório crítico e criativo do leitor, vale conferir as recomendações do nosso entrevistado: a entrevista com Beatriz Resende para a revista Z Cultural, o episódio #116 do podcast Radio Companhia, bem como o episódio de dezembro de 2021 do Daria um livro . Por fim, a SarteL indica a leitura da tese de mestrado de Tenório, que, como apontado na entrevista, interessa não só aos amantes de literatura, como também aos apaixonados pelo ensino.

Responsável: Leonardo de Abreu Waack

Revisado por Leo de Freitas Montagner