Maria do fim da rua

Clara Maas

 Essa era uma história que todo mundo do bairro conhecia. 

 Uma junção de fofocas e sussurros curiosos de gente que não entende nada.

Mas quer entender.

 É engraçado como o choque inicial rapidamente se metamorfoseia em chacote e gargalhada, em lenda urbana que não quer durar,

Em suspirinhos de pena que seriam de piedade se não fossem mais escárnio.

Um caso de um tempo onde os pais não tinham medo de mandar os filhos pra fora.

Tão pouco de deixar a cria visitar a avó lá na esquina 

Que mandavam a noite mesmo, porque a carne em casa ainda tá crua.

E que não se preocupam se o caminho todo está escuro demais.

Que não pensam nada quando uma carona é oferecida, e a menina não recua.

História de crianças que somem,

e só aparecem três dias depois,

estendidas e sozinhas 

ao final da rua.

Dá medo né? 

Dava em nós também 

Porque quando o choque de uma história horrível passa

Muito tempo depois que os jornais pararam de mencionar 

E que a família parou de ir à público se pronunciar

Quando passaram 20, 30, 40 anos de uma frieza tão monstruosa 

Sabe quem toma mão dessas histórias? Por entre as conversas dos parentes e da mão apertada dos seus pais fechadas nas suas, quando alguém te olha estranho na rua? 

São as crianças. 

Não todas, claro. Só aquelas que já se acham grandes e tão sempre entediadas 

Mas nunca falam que a luz do corredor fica acesa quando vão dormir 

Os piores casos nas mãos de crianças se tornam infantis, ainda que elas nunca achem.

Maria do fim da rua ainda é caso de má fama.

Porém, pouco a pouco ela se tornou mais em desafio de festa de pijama.

Eu tava indo dormir na casa da Joana, minha amiga de décadas que me cabiam aos 11 anos.

A gente se adorava de vez em quando, que não era a maior parte do tempo. Ela se achava demais, e me achava muito pouco. Não era só eu que estaria lá, e sim mais umas outras das demais das de mais, para a eu minúscula. A noite passou entre fofocas que eu não entendia bem, risadas e cochichos que não tinha permissão de ouvir. Quando deu meia noite, o enfado bateu. Então, em êxtase de anfitrião, Joana perguntou: “Quem quer brincar de Maria do fim da rua?” 

O silêncio seguido de risadinhas contidas e arrepios coletivos. Àquela altura todo mundo já conhecia o básico do jogo. Bater na janela três vezes, dizendo o nome de Maria, sair correndo para fora de casa e esperar sua aparição no fim da rua. Seu rosto nunca era igual para aqueles que a viram. Para alguns, era só diversos rabisco em uma moldura, para outros uma criança chorosa qualquer, convenientemente pouco parecida com suas fotografias, e às vezes também diziam que era só uma pequena sombra a distância que continuava longe mesmo que você se aproximasse.

Depois da proposta de Joana parecia óbvio que não havia vítima melhor para a brincadeira do que eu. E eu fui meio a esmo, como se o que tivesse acontecido fosse uma piada que não colocava em fio minha vida social. Segui as regras:

1,

2,

3.

Maria, Maria, Maria.

Eu abri a porta devagar para não chamar a atenção dos pais entre os murmúrios abafados das meninas, exigindo que eu fosse logo.

Em alguns segundos me encontrei praticamente no fim da rua escura, com as únicas luzes sendo das casas ao redor. 

E eu esperei. Não sei quanto tempo, mas sei que pra mim parecia uma eternidade. E a cada minuto que passava eu sentia um pouco menos da minha coragem passageira e mais do medo constrangedor. Eu nem pensei em voltar para a casa com algo menos de uma face pálida e uma história conivente que desse um tantinho de respeito que pra mim já valeria tudo.

 É verdadeiramente bizarro se encontrar em um escuro profundo, só ouvindo sua própria respiração, esperando algo que não acontecia. Quando contam desses desafios o pior que parece acontecer é ver a assombração, mas nunca falam que, na verdade, o aguarde é tão mais tenebroso.

Finalmente minhas costas se erguem de novo. Uma luz que se aproxima rapidamente de mim e minha respiração é um sopro.

A luz vai deixando de ser uma luz só.

Agora elas são duas.

E um carro comprido e meio achatado para do meu lado.

“Precisa de uma carona?” 

O homem lá dentro tem o cabelo coberto do que parecia ser gel, e uma pele tão azeda que  parecia ter icterícia.

“Não precisa, a casa fica bem al-“

Atrás de mim as luzes de dentro das casas somem, não existe luz alguma na rua à minha frente além do farol do carro. 

“Tem certeza? Não é problema nenhum, eu posso te levar.” Ele abre a porta do passageiro 

“Obrigada, mas eu sei o caminho.” 

“Pode entrar, eu te levo.”

“Não precisa mesmo.”

“Pode vir, não tem problema."

“Realmente, não precisa.”

“Entra no carro.”

Eu entrei.

O meu assento parecia de brinquedo, eu tinha que ficar toda agachada nele para a minha cabeça não bater no teto. Não tinha jeito nenhum de sentar confortável ali, seja por espaço ou atmosfera. A cadeira claramente tinha sido feita pra alguém com um corpo menor que o meu. 

O carro todo possuía um cheiro muito estranho que jamais fui capaz de identificar, e espero nunca conseguir. O chão era uma bagunça de papéis amassados e recibos que quase decorei pelo tempo que fiquei olhando para baixo. Não foi difícil notar que, aonde quer que estávamos indo, a casa de Joana já estava longe, e o escuro continua atrás de nós pelo retrovisor. Nele também enxerguei uma franja estranha a mim, e olhos mais forasteiros ainda. Comecei a suar frio.

Naquele momento mesmo, notei que quando contavam a história de Maria, ela sempre possuía um começo, e um fim. Uma boa metade era recortada pela ignorância juvenil. Era sabido que ela morreu, mas não era perguntado: Como? Porque? 

Depois do que?

O pânico foi escalando a minha garganta em um soluço que eu não ousava soltar na mudez do carro. O homem fazia menção de dizer algo mas ele não falava nada, e eu preferia assim.

Eu tive que viver minha vidinha chata até aquele momento para notar que ser Maria era meu pior medo. Que vê-la não era nada comparado à viver o que ela viveu. E não saber o que era pior: descobrir o que aconteceu com ela ou viver aquilo na pele.

Eu abri a porta do carro em movimento. Me joguei contra o concreto com todas as minhas forças. Fiz um galo na testa e ralei meus cotovelos, coisa que jamais consegui explicar pros meus pais, que nunca mais me deixaram dormir na casa de Joana. Quando consegui levantar a cabeça e olhar à minha volta, vi que tinha pulado poucas casa antes da dela. E senti o alívio de não ter ido para outro lugar.