Professora da USP, Ji Yun Kim, fala sobre o processo de tradução de "Atos Humanos"

Professora Ji Yun Kim

Nascida em Gwangju, Coreia do Sul, Ji Yun Kim conheceu o Brasil em 2011 e se apaixonou pela música nacional e pela sonoridade do português. Concluiu seu mestrado em literatura brasileira em 2015. Vive no Brasil desde 2016, e hoje é professora de língua e literatura coreana na USP.

Primeiramente, perguntamos sobre as diferenças culturais entre os dois países que mais chamam a sua atenção:

Ji Yun Kim (JYK): Bom, coreanos são pessoas quentes, parecidos com os brasileiros. Essa imagem que aqui se tem em relação aos asiáticos, que são mais quietos, mais tímidos, mais introvertidos, a meu ver não cabe na cultura coreana (risos). Acho que é porque aqui a comunidade japonesa é muito maior, tem uma história mais longa. A lista das diferenças pode não acabar, mas ultimamente tenho pensado muito na diferença das maneiras como as pessoas se relacionam umas com as outras. Aqui é muito diferente da Coreia; é mais aberto, mais leve, mais fácil de começar, mais espontâneo, mais instintivo e, por isso, pode ser mais livre. Isso se aplica a todo tipo de relação entre as pessoas; desde as relações pequenas, como na rua, do dia a dia, até as mais sérias, como no trabalho ou no relacionamento. Ainda tenho dificuldade de entender os detalhes da diferença do dia a dia.

Seu mestrado é baseado nos livros Flor Negra, de Kim Young Ha, e A República dos Sonhos, de Nélida Piñon, ambos a respeito da imigração coreana, para o México e para o Brasil, respectivamente. A professora explica o interesse pela obra brasileira:

(JYK): Falando a verdade, na época em que precisava montar o projeto do mestrado, eu não tinha lido muitas obras brasileiras; primeiro, porque não sabia português o suficiente para apreciar obras literárias em português; segundo, porque não tinha muitos livros de literatura brasileira traduzidos ao coreano. Conversando com a minha orientadora sobre meu interesse pela diversidade do Brasil, como um país pode abranger tantas diferenças das pessoas de origens diferentes, ela recomendou A República dos sonhos, de Nélida Piñon para eu pesquisar melhor através da história da imigração.

Em 2021, Ji Yun traduziu Atos Humanos, romance de ficção histórica da aclamada Han Kang, em sua primeira publicação no Brasil, pela editora Todavia. O livro se passa durante o Massacre de Gwangju, período em que manifestações estudantis foram fortemente reprimidas pelo governo sul-coreano, resultando em centenas de mortos, em 1980. A professora fala sobre o processo de tradução e sobre sua ligação com a história:

(JYK): Tenho uma longa história em relação ao meu trabalho da tradução da obra. Mas, resumindo, no começo, quando a editora entrou em contato comigo, eu recusei porque eu não tinha coragem de traduzir uma obra que eu amava tanto e cujo tema era tão sensível e traumático quando eu nunca tinha traduzido uma obra literária para a língua portuguesa fora da sala de aula. Então o processo foi muito pesado, era o processo de lutar contra o meu medo de estragar a obra tão valiosa, a sensação de incapacidade, e a falta de tempo. Sonhava muito com a obra, chorava, gritava com um amigo na hora da revisão, mas ao mesmo tempo me sentia honrada com a chance de traduzir aquela obra.

Tinha uma parte do livro que eu temia ler, porque cada vez que chegava naquela parte não conseguia não chorar. O 18 de Maio aconteceu na minha cidade natal, e eu cresci aprendendo sobre ele e visitando os lugares do acontecimento. Na verdade, a cidade em si era o lugar. Depois de fazer o contrato da tradução com a editora, fui para a Coreia. Meus pais ainda moram lá na cidade, e eu fui visitar os lugares dos acontecimentos, museus e o cemitério, antes de começar a fazer a tradução. Não sei o que eu estava procurando nesses lugares, mas eu queria me sentir perto da tragédia, não queria fazer a tradução só como um trabalho. Durante algum tempo depois da publicação, eu não tive coragem de ler o livro traduzido , até escrever um artigo sobre ele. Acho que preciso de mais tempo para entender o que significa essa tradução para mim.

Ji Yun discorre mais sobre o processo de tradução e sobre o universo multilíngue no qual está inserida:

(JYK): Estou escrevendo a tese do meu doutorado (este é o último ano) sobre a tradução literária. Eu publiquei uma tradução no ano passado, mas não sei se eu já me considero tradutora como profissão. Mas como uma pesquisadora de linguagem e tradução, e uma estrangeira vivendo no mundo onde não se fala a língua materna, o universo multilíngue é, às vezes, muito perturbador. Bom, aprender um novo idioma é ganhar um novo universo. Você não só aprende uma nova ferramenta de comunicação (obviamente, porque a língua é muito mais do que isso, tem forte relação com a existência); você ganha uma nova forma de existir através do novo idioma. Mas esse novo universo nunca fica quieto ou fácil, ele continua interagindo com a sua língua materna, e esta interação não é sempre alegre ou esperançosa. Ela te divide, te abala, te exclui, te questiona, te faz ficar com sede. Então, transitar no mundo do coreano e português, no meu caso, sempre me deixa incerta e inquieta, e até agoniada, mas ao mesmo tempo fascinada. Pode soar estranho, mas é assim mesmo. Doce sofrimento.

Sobre a diferença entre a língua coreana e o português, mesmo para falar “as principais diferenças” precisa de pelo menos um semestre de aulas. A tradução literária passa muito longe da questão da língua como signo. Então, para mim, o que tem que ser levado em conta na tradução, independentemente de idioma, é o que faz aquela obra ser a obra literária. O que faz Atos Humanos ser Atos Humanos, obra literária. Isso para mim entra na questão do ritmo do texto, que está fortemente relacionado à crítica da obra, como todos os elementos da linguagem foram organizados de maneira  própria e irredutível.

A professora se aprofunda na sua experiência com a dificuldade de obras de língua "não-inglesas" entrarem no circuito do mercado nacional e internacional.

(JYK): Sobre esse assunto, posso virar noite (risos). Mas, tentando resumir, a minha primeira experiência como tradutora com o mercado editorial foi dura. Tive que lutar com o editor para a minha tradução ser respeitada. Quando recebi a revisão da minha tradução, fiquei chocada e perdida, porque não era uma revisão. Era a tradução da edição inglesa. Como não tem ninguém que entende coreano, na hora da revisão, o revisor se baseou na tradução inglesa, que é totalmente diferente do coreano. Vocês até podem pesquisar sobre como a tradutora inglesa Debora Smith tem a fama de mudar tudo e fazer uma tradução adaptada. Isso não é necessariamente uma crítica, mas ela tem uma visão diferente da tradução, totalmente contrária à minha. Eu tinha que recomentar em cima de cada parte revisada, que era quase a maioria do texto, e demorou mais 2 meses para convencer o editor. Depois dessa luta eles aceitaram o meu texto.

A primeira coisa que senti é que o mercado editorial não dá importância ao tradutor. Pensava que seria diferente para os professores-tradutores da USP que são mais experientes, mas muitos já me falaram que eles passam coisas parecidas no processo de publicação. A segunda coisa, igualmente triste, é que o mundo da tradução é muito dominado pela língua inglesa, independentemente de onde vem a obra, por conta do inglês ser a língua dominante, e a maioria das obras literárias marginais serem traduzidas primeiro ao inglês. Minha impressão diante desta atitude da editora, honestamente, é que parecia que eles só precisavam de um nome coreano na tradução para falar que é a tradução direta mas não se importava muito. Senão, não consigo achar outra explicação nessa situação. O revisor até escreveu nas notas “na tradução inglesa não estava escrito assim”, sem nem disfarçar.

Mas, por fim, ela nota um indício positivo de mudança na recepção da língua e da cultura coreana:

(JYK): Na verdade, acompanhando um pouco esse crescimento de interesse pela língua e cultura coreana, principalmente dentro da USP, fico surpresa mesmo, porque consigo sentir a mudança na pele, mesmo em tão pouco tempo. Espero que esse interesse (que parece que começou a partir do K-pop) se espalhe para outras áreas diversas da Coreia e dure, com profundidade.

Responsáveis: Giovana Tomaz Eufrozino, Matheus Cunha e Victor Martins

Revisado por Leo de Freitas Montagner