Paulo César (Editora Heliópolis) relata o funcionamento e a importância das editoras independentes
Paulo César Marciano, também conhecido como PC, é um ator, cineasta, escritor, produtor cultural e roteirista que tentou publicar seu primeiro romance Melissa ao longo de vários anos. Durante esse processo, notou que não era comum que as editoras tradicionais publicassem obras de escritores sem currículo formal ou da periferia. Em razão dos obstáculos que teve que enfrentar ao tentar se inserir no mercado editorial, surgiu a ideia de criar uma editora a fim de publicar seu romance, e também incentivar outros autores que não se encaixam no “perfil editorial tradicional” a materializar suas ideias. Assim, através do selo Editora Gráfica Heliópolis (@editoragraficaheliopolis) e por meio do financiamento do Itaú Cultural, foram publicadas mais de 50 obras de autores que vivem em comunidades.
SarteL: Gostaríamos de saber como os autores chegam até a editora, como funcionam as seleções de originais e por quais processos o livro costuma passar antes de ser publicado.
Paulo César (PC): Falando um pouco sobre a rotina, a gente trabalha de forma diferente das outras editoras. Descobrimos um jeito nosso de trabalhar. A gente não seleciona o original primeiro, selecionamos o escritor. Queremos atender uma certa demanda, então, precisamos ver se esse escritor está dentro do nosso público alvo, que são as pessoas que não tem chance em uma editora comum. Por exemplo, um jovem de 16 a 29 anos tem uma dificuldade maior para entrar no mundo editorial, a menos que ele já tenha um canal no YouTube, ou seja famoso no Instagram, mas aí estamos falando de pontos fora da curva, o que não é o caso. A gente procura essas pessoas que estão fora desse perfil editorial, como travestis, pessoas com deficiência (PCDs), pessoas negras e que não têm condições para pagar. Isso porque geralmente, se você não pagar, você não publica nas editoras tradicionais. Nesse sentido, depois de entendermos quem é o escritor e de estudarmos o caso, aí vamos analisar a obra e criar esse vínculo.
Assim que recebemos a obra, começamos a fazer todos os processos editoriais. Uma característica nossa é que procuramos não mexer muito no conteúdo, só a revisão mesmo, mas em algumas situações ignoramos as regras gramaticais nas correções ortográficas, pois mexemos muito com literatura marginal, então, tenho que entender isso também, sabe? É preciso ter muita sensibilidade para trabalhar com os escritores. Vou dar um exemplo, chegou um livro aqui, que foi passar pelo processo de revisão e teve que ser reavaliado. No mesmo texto, o autor escreveu a palavra “Helipa” de dois jeitos. Helipa é o apelido carinhoso de Heliópolis. Tinha hora que ele escrevia “helipa”, com letra minúscula, e tinha hora que ele escrevia “Helipa”, com letra maiúscula. Depois de conversar com ele, percebi que quando ele escrevia com letra maiúscula era porque alguém de Heliópolis estava falando e quando era com letra minúscula era alguém de fora que estava falando, porque o pessoal de fora minimiza a comunidade enquanto a gente se auto reconhece.
SarteL: Falando um pouco mais sobre revisão. Quais são os critérios usados no processo? A editora tem uma equipe fixa de revisores e outros profissionais?
PC: Desde que eu me entendo por gente, eu fui criado no meio da arte; eu sou ator de formação e estudei Letras também. Então, eu conheço muitas pessoas do ramo, de várias linguagens artísticas, como cinema e outros. Além disso, aqui em Heliópolis, recebemos muitos projetos de residências artísticas ou de Organizações não Governamentais (ONGs). Enfim, toda vez que eu vou fazer uma parceria com essas pessoas, eu sempre ressalto que, para trabalhar com a comunidade, é preciso se adaptar ao escritor, e não o contrário. Eu também aplico isso, mesmo estando dentro dessa realidade, entende? A comunidade sofre vários problemas estruturais antigos, a favela, na verdade, é uma extensão moderna do quilombo. Então, a gente tem que entender que é um povo que já sofreu e ainda sofre muito. Portanto, para atendermos a demanda, adotamos um sistema individualizado. Cada obra é uma obra e cada escritor é um escritor.
O revisor e o escritor andam muito juntos e existe muita troca entre ambos. Hoje eu trabalho diretamente com quatro revisores: três titulares e um reserva, que sou eu. Dentro desses três revisores, eu já sei quem é melhor para revisar um texto para a norma culta e quem é melhor para revisar um texto marginal. Eu sempre peço a opinião dos escritores, quando eu estou hesitante na revisão. Não existe um sistema hierárquico, construímos sonhos com várias mãos.
Adotamos esse sistema durante todo o processo de confecção dos livros. Um exemplo disso ocorre na produção das capas, perguntamos o que o autor imagina e depois vemos as linhas de trabalho possíveis. Nesse setor tenho três capistas e tem muito esse trabalho de diálogo. Eu não quero que o autor pegue o livro e pense que não era isso que ele queria, sabe? A editora publicou mais de 50 livros e isso nunca aconteceu; se isso acontecer significa que trabalhamos errado. Lógico que depende de cada caso, tem que fazer sentido. A gente tenta achar um ponto de equilíbrio onde a obra fique atrativa comercialmente e, ao mesmo tempo, o escritor esteja satisfeito. Eu fiquei dez anos com meu livro debaixo do braço, então, eu entendo o que é ter uma produção artística engavetada. Procuramos sempre ter muito cuidado para conseguir realizar esse sonho dos autores.
SarteL: Onde é possível adquirir os livros da editora?
PC: A gente está numa transição, na verdade. Em 2018, participamos de um edital do Itaú Cultural, que possibilitou que a gente montasse um biru, além de nos ter dado equipamentos. Foi uma baita de uma ajuda. Publicamos os 56 primeiros livros com essa grana e somos muito gratos porque eles foram os primeiros que nos deram atenção. O projeto acabou em dezembro de 2019 e eu fiquei com alguns problemas para resolver em janeiro, as últimas notas para mandar e essas coisas. E em fevereiro eu perdi meu pai. Nesse momento, fiquei sem chão. Fiquei esse mês meio em off, só resolvendo problema e chorando. Quando chegou março, veio a infeliz dessa pandemia. Ferrou tudo porque congelou os editais. Quando eu ia conversar com os empresários para tentar patrocínio direto, os caras falavam: ‘Não, agora a gente está dando cesta básica porque é necessidade’. E eu concordo, eles fizeram certo. Mas enfim, virou uma bola de neve.
Por conta disso, a editora só conseguiu tirar a “cabeça da lama” agora em 2022, quando fomos aprovados, no final do ano, no edital do Programa de Ação Cultural (ProAC) do Estado de São Paulo para levantar 20 publicações. Dessas 20, já fizemos 5. Já até tirei documento e, agora, seria a segunda fase. Contei toda essa história para dizer para vocês que eu não sei vender livros (risos), ainda estamos aprendendo. Agora, estamos fazendo um site e vamos tentar vender por ele.
Também queremos que o escritor vire empreendedor do próprio livro. Então, ele recebe o livro de uma forma bem acessível para ele, não gasta um real com nada. Damos dez exemplares para ele como um adiantamento de 10% de uma tiragem de cem unidades, então se o escritor não tiver nada, se estiver zerado de grana, ele já começa o lançamento com dez livros, na pior das hipóteses. Muitos outros encomendam mais vinte, cinquenta, até mais cem. Por quê? Porque a gente os ensina a fazer venda antecipada, o que faz com que eles arrecadem um dinheiro antes, principalmente de pessoas mais próximas, como amigos, familiares. A gente faz toda uma metodologia mercadológica para eles. Esse é mais o trabalho da Elaine e do Diego porque no coletivo somos em três: eu, Elaine, minha esposa, e Diego.
Além disso, ele também compra os livros comigo a preço de custo: 50% de capa. Se o livro custa R$30,00, ele paga R$15,00. Desse modo, ele pode vender a R$30,00 e ganhar 50% que ele investiu. Porque o escritor, no Brasil, não ganha dinheiro, nem sendo best-seller. O escritor ganha dinheiro de outra forma.
Eu, por exemplo, não ganho dinheiro com meu livro porque eu estou vendendo muito, na verdade, eu ganho dinheiro com livros porque a sociedade me viu mais intelectual e me contrata para dar aula. Ganho fazendo oficina, palestra, indo em lugares que me convidam e me pagam para isso. Mas só me convidam porque eu publiquei o livro e por causa do projeto da editora. Só que eu dou aula de oficina de escrita criativa desde meus 20, e estou com meus 44 anos. Tem 24 anos que dou aula e minhas aulas triplicaram porque eu publiquei um livro.
Sabe, a sociedade é assim, ela trabalha dessa forma. Quando eu não tinha o livro, comentavam: “Ah, mas será que sabe escrever? Não tem nem um livro”. Agora que eu tenho, sou intelectual. Eu não acredito nisso, mas a sociedade enxerga assim. A gente está pensando em remuneração, precisamos sustentar nossas famílias. A gente precisa entender como a sociedade e o mercado funcionam porque, senão, a pessoa não consegue gerar renda para si mesma.
Então, o exercício do artista independente é muito isso também, de entender como funciona para poder criar estratégias e render. Hoje, um escritor, por exemplo, recebe, pelo modelo tradicional, 10% de cada livro com fechamento semestral. Agora, é só fazer as contas, é só ver o último livro que vocês compraram, quanto pagaram e assim vão ficar sabendo quanto o escritor ganha por livro. Se vocês pagaram R$40,00 no livro, o escritor recebeu R$4,00. Agora tentem imaginar quantos livros foram vendidos e façam a conta. É um absurdo. Imagina que você vendeu mil livros, e é muito difícil vender tudo isso, ainda mais sendo periférico, o escritor recebe R$4.000,00 durante o semestre. Dividindo esse valor em 6 meses não dá nem R$1.000,00 por mês. Não dá. Às vezes, com uma palestra no SESC você ganha isso. Quando estou falando disso, eu imagino livro literário, não que eu desconsidere outros tipos, mas a gente está falando do livro de poesia, de romance, de conto, de ensaio, não estou falando de autoajuda, nem do livro “Como emagrecer em 3 semanas”. Não estou falando desses tipos de livro que prometem um milagre para a pessoa. Esses são best-sellers, e devem ter um contrato diferente com a editora para ganhar mais do que 10%, eu acho. Mas, tradicionalmente falando, quando a gente fala de literatura, são 10% de direitos autorais. Então, querer viver de livro é um pouco de ilusão, o livro ajuda profissionalmente em outros campos, mas não vai sustentar sua vida. Isso é ilusão, é loucura. Então, a gente tenta, de alguma forma, sem desconstruir o sonho da cabeça da pessoa, explicar isso tudo para eles. Até porque eles não podem se enganar, senão vira frustração.
SarteL: Quanto ao vínculo dos escritores com a editora, gostaríamos de saber: Os escritores recebem apoio? Como é a publicação? Eles criam vínculo com a editora para publicar outras vezes?
PC: Hoje eu tenho esse contrato, de que se alguma editora quiser comprar algum livro, ela precisa me pagar os direitos autorais. Mas se rolar uma conversa legal, eu acabo não ligando muito para o contrato. Eu não sou muito chegado nessas paradas. Por exemplo, o contrato tem 5 anos de vigência e renovação automática. Mas se o escritor tiver 3 anos e quiser sair, e a gente trocar ideia, tiramos ele, não é preciso esperar os 5 anos. Eu abro mão dos dois, não tem problema. Porque a gente não quer prender ninguém. Eu sou artista há muito tempo, e eu cheguei a ficar preso por conta disso, sabe? Então, eu olho o contrato, e mesmo não concordando eu assino porque, senão, não tenho trampo.
O nosso diferencial hoje é que nós não somos uma editora de formação, como um cara que tem 20 anos de editora que foi mandado embora e montou a dele. Não, no nosso caso, é um escritor que não conseguiu publicar, criou uma editora para se auto publicar e mais 49, entendeu? Era 50 na época, mas a gente não aguentou e publicou um pouco a mais. Como vi que não conseguia publicar, entendi que tinha um mercado aqui dentro, entendi, também, que é sempre nós por nós mesmos, então, por que ficar adiando isso? Vamos nos juntar, fazer a editora e sair publicando. O primeiro da fila foi o meu, que já estava esperando há muito tempo. Então é isso, é de artista para artista, sabe? Tanto o Diego quanto a Elaine pensam igual a mim em relação aos contratos. Nós optamos por esse caminho, precisávamos nos profissionalizar, tirar documentos.
Sem documento, por exemplo, a gente não conseguia tirar o ISBN, que dá mais visibilidade para o livro, colocando o escritor numa posição melhor. Além de o livro ter a possibilidade de participar de concursos, pode ser distribuído para outras editoras, ser vendido para o governo e, também, se o escritor for estudante, ajuda nas horas complementares. Se o livro não tiver ISBN, é considerado um livro artesanal, não vai a lugar nenhum, só será vendido de mão em mão. E também, tirando o ISBN, eu estou garantindo que a obra é original. E o que me garante que ela é de fato? O contrato. Nele, há uma cláusula que garante que o texto da pessoa, dado à editora, é de autoria de quem entregou. Se a pessoa mentir, é ela que vai responder judicialmente, não eu. Até porque, foi a pessoa que agiu de má fé comigo e não o contrário. Então, o contrato é necessário. É a burocracia da vida, não tem jeito. Eu queria que não fosse assim, mas não tem como não ser. Só que se precisar abrir mão, a gente abre.
SarteL: Mudando um pouco o foco, encontramos nas redes sociais da editora, que, no final de 2019, foi lançado o livro Jovens Escritores da Escola Demósthenes Marques. No que tange a projetos em escolas – já existia a intenção de fazer essas ações quando a editora foi fundada? Como foi colocar em prática? Foi a escola que procurou vocês?
PC: A gente queria sim trabalhar com escolas, mas não tantas inicialmente (risos). Tínhamos pensado em duas ou três, para fazer um trabalho bonito, podendo chegar até cinco, mas erramos feio porque acabamos com vinte.
Eu tinha um educador, o Rubenildo Limeira, que era responsável só por isso, para não deixar a gente desfocar, mas ele perdeu o controle disso e começou a falar com quem não era para falar (risos). Como ele é coordenador do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (Mova), ele foi convidado para uma reunião da Diretoria de Ensino, que tinha vários representantes de escolas, e acabou contando do projeto lá, então todas as escolas começaram a fazer pedidos. Não tinha como falar “não”, era muito difícil porque os alunos e professores ficaram animados. Mas eu não tinha dinheiro para lidar com todas as escolas, então a Elaine começou a pedir apoio financeiro. O dinheiro em si, não veio, mas a gente conseguiu uma grande doação de produtos de uma instituição e rifamos para conseguir atender às escolas.
Depois, nós criamos uma apostilinha indicando aos professores como construir um livro de forma coletiva, para que eles trabalhassem com as crianças. Tinham várias opções: escrever um diário, fazer uma autobiografia etc. Mostramos várias possibilidades. Então os livros que a gente tem são de várias “pegadas”, tem de contos, crônicas, cordel e até mesmo de terror; contando lendas urbanas como a “loira do banheiro” e afins.
E no caso da Escola Demósthenes Marques, eles já tinham um projeto de Jovens Escritores dentro da sala de leitura, por isso o livro leva esse nome. A gente foi até lá, abraçou o que estava sendo produzido e compilou em livro, assim como fazíamos em outras escolas. Tentamos ao máximo manter a originalidade e para fazer tudo isso a gente tinha que frequentar a escola, não queríamos só jogar na mão do professor e deixar. Então foi um grande desafio fazer isso com vinte instituições. Quase ficamos malucos (risos), mas a gente deu conta.
SarteL: Existe uma equipe para diagramação ou você é o responsável por esse processo?
PC: O meu filho faz a maioria das capas, mas tem mais um pessoal envolvido nisso também, os três capistas que eu comentei. E as diagramações, sou eu quem faz a grande maioria, mesmo tendo uma pessoa ou outra para me ajudar nisso. Isso porque o nosso projeto é muito caro, audacioso, não se encaixa nos editais. Geralmente, o fomento para literatura é de cerca de 50 mil reais para publicar um livro. Eu ganhei ProAc de 100 mil, mas ia utilizar para vinte livros. Quer dizer, recebemos dinheiro para dois, mas fazemos vinte, então eu tenho que ficar me adaptando o tempo todo. Não existe nenhuma lei de incentivo para que se publiquem escritores em massa como a gente publica; não existe um edital para editoras. Esse que a gente ganhou, por exemplo, nem era pra literatura, era para incentivar a cultura da favela e como eu estou na favela, me senti no direito de nos inscrever e ganhamos; mas isso foi uma adaptação.
Então, se eu fosse pagar o que um capista ou diagramador me pede, eu só ia conseguir fazer os dois livros mesmo, não vinte, porque é um processo muito caro. Por isso sou eu quem diagrama, não encontro mais ninguém para trabalhar pelo valor que eu posso pagar. Eu adoro diagramar, mas não faria se não precisasse, porque hoje eu sou o técnico de um time que tem que entrar em campo para marcar o atacante adversário. E isso é ruim já que eu poderia estar, por exemplo, procurando divulgação para a gente, ou um investidor, poderia estar escrevendo mais projetos, também queria fazer um mini estúdio para gravar audiobooks…, mas gasto muito tempo diagramando e não consigo. No caso do outro diagramador, tem que ser na base da parceria, porque o valor é pouco. Tenho que começar a pegar projetos maiores também para ajudar, algo de 200 ou 300 mil, e assim remunerar melhor a equipe. Mas enquanto isso não acontece, toda ajuda e parceria é bem-vinda.
SarteL: Como essa nova onda de escritores interfere no modo que a literatura é percebida no país?
PC: Nossa, eu vou ficar duas horas respondendo essa pergunta (risos), vocês tocaram em um lugar em que não deviam! Mas vou tentar ser breve. Primeiro vou dar um cenário geral: o brasileiro não é consumidor de livros, ponto. A pequena porcentagem que consome, vai consumir o quê? Livros traduzidos, clássicos e best-sellers. Todos “gringos”, porque a gente tem síndrome de vira-lata, de país colonizado, e acha que tudo que vem de fora é melhor. E não é que estes livros sejam ruins, só que são os únicos consumidos. Daí, entramos nos livros brasileiros. Nestes, são consumidos alguns clássicos também, maravilhosos, mas ainda em menor quantidade, porque são de literatura. O que vende mesmo são os de coach, de autoajuda, “como fazer” qualquer coisa…, que também não são necessariamente ruins. O ponto é que o livro artístico, de literatura, de poesia, o romance etc. tem uma porcentagem muito pequenininha de consumo.
Mas isso foi só uma introdução, a resposta vai vir agora: quem escreve esses livros? Homem, branco, cis, hétero, de meia-idade, com ensino superior e de classe média. E quais são os personagens principais deles? Homem, cis…, e tudo isso. A personagem reflete o escritor. Então falta representatividade. Embora eu seja homem, hétero – até casado –, eu não me identifico com isso, porque quando eu ponho a cara na janela, o que eu vejo é uma mulher que dá um duro danado para criar três filhos sozinha, porque o marido que tem essas características os abandonou. Quando eu leio, eu gosto de ler esses livros, mas não me sinto representado.
Os livros da Editora Heliópolis, por exemplo, não têm nenhum protagonista igual a esse, não porque é proibido ou algo assim, é porque não têm mesmo. Temos protagonistas travestis, negros – agora temos também um livro que vai sair com um protagonista indígena, chama A fissura de Tupã. Então a gente acaba equilibrando um pouco essa conta, acaba sendo o nosso papel. Assim como todas as outras editoras independentes e periféricas, que têm essa bandeira da literatura marginal e acabam prestando um serviço muito grande para a literatura brasileira.
E para mostrar que eu não estou mentindo, quem me disse isso foi uma pesquisadora, depois de realizar um trabalho sobre o assunto. Durante uns 27 anos, ela pegou todos esses livros artísticos brasileiros de editoras tradicionais e fez um censo com os personagens, como o censo do IBGE. O resultado é que o negro só aparece quando é serviçal ou criminoso, a mulher é sempre submissa ao homem e o protagonista é aquele perfil que eu já falei. O artigo é: “Ausências e estereótipos no romance brasileiro das últimas décadas: alterações e continuidades”, da Regina Dalcastagnè, professora titular da Universidade de Brasília (UnB). E eu concordo com isso, esses selos, editoras e projetos literários como Sarau do Binho, da Baderna, o Capicianos etc. trazem o equilíbrio para a literatura brasileira. E nada contra os brancos, não é uma crítica a eles, é uma questão de reparação histórica. É preciso mais espaço para as mulheres publicarem, para os jovens, para os negros e os LGBTs.
SarteL: Você tem alguma colocação a acrescentar?
PC: Eu gostaria de falar do nosso evento, do dia 30/07, realizado com a ajuda de uma ONG parceira nossa, a Mover Helipa (@moverhelipa), em que lançamos os livros Poesia, quase palavra da Fernanda Valentim, Aleatoriedades de mim da Tábatha, e o romance Sol do Gabriel Felipe Garça.
Também queria agradecer vocês! A editora leva o nome da comunidade em que eu nasci e moro até hoje, e gente para falar mal daqui tem um monte. Mas eles não falam que aqui tem projeto de horta comunitária e teto verde para diminuir a poluição e alimentar a comunidade. Eles não contam que foi aqui que nasceu a Taça das Favelas, por iniciativa da Central Única das Favelas (CUFA) de Heliópolis; nem que ela entregou mais de 20 mil cestas básicas no auge da pandemia. Não dizem que aqui tem aula de teatro, estudo de música, nem que tem editora. Nunca dei uma entrevista para a Record, mas eles não tiram Heliópolis da boca (risos). Então agradeço muito quem quer conhecer o outro lado, que não é só crime. Tem crime, não vou dizer que não, mas não tem só isso e são muito mais pessoas de bem do que criminosos, somos 220 mil habitantes! Para falar bem de nós, são poucos, e nós temos que valorizar, então eu agradeço muito pela entrevista, por quem procura a gente e nos trata com carinho.
Vocês estudantes, vocês jovens que transformem esse mundo caótico que nós vivemos. Sei que é muita responsabilidade o que eu estou dando na mão de vocês, mas vocês têm a nossa confiança e gratidão.
O artigo indicado pelo Paulo César está disponível online em: < https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/fale/article/view/40429/26848 >.
Para quem se interessa pelo mercado editorial e gostou desta entrevista, também será proveitosa a leitura de “Professora da USP, Ji Yun Kim, fala sobre o processo de tradução de Atos Humanos" , da primeira edição da SarteL. Nesta, a professora Kim também discorre sobre o tratamento dado aos tradutores em uma editora tradicional.
Responsáveis: Aryadne Vecchi Bonotti, Bianca Dos Santos Lima e Marina Gaeta.
Revisado por Daniely Ribeiro de Melo