José Horácio: poesia e outros tópicos
Horácio Costa é, além de professor, poeta e tradutor. Formou-se em Arquitetura e Urbanismo pela USP em 1978 e estudou no departamento de Espanhol-Português da Universidade de Nova York em 1983. Em 1994, doutorou-se na Universidade Yale, com o tema José Saramago: o período formatista . Lecionou também na Universidad Nacional Autónoma de México.
Tem 13 livros de poesia editados no Brasil e 10 no exterior. Recebeu em 2014 o prêmio Jabuti por seu livro de poesias Bernini. Mais recentemente, lançou o livro de poemas Viagem ao México 3, em Lisboa.
SarteL: Como foi a escolha e o processo de publicar o seu novo livro? Lisboa tem alguma ligação com a nova escrita?
Horácio: Não, não tem nenhuma ligação com o livro. Eu escrevi esse livro integralmente na Cidade do México; estava lá como bolsista da Capes, ganhei a bolsa Capes-PrInt que é feita entre a USP e a Capes. Minha pesquisa de Pós-Doutorado começou no México, em 2017, e continua até agora, estou fechando esse ano ou ano que vem. Ela diz respeito a um assunto muito preciso, até podemos falar sobre depois, que é a circulação de livros e de autores portugueses na Nova Espanha — o nome colonial do México — como partição do Império Espanhol. Pesquisei muito, visitei várias bibliotecas coloniais mexicanas, isto é, com livros da Nova Espanha. Depois que ganhei essa bolsa, fui para lá e comecei a escrever poesia, coisa que eu faço com frequência, vocês bem sabem. Houve momentos em que eu estive mais limitado nas minhas pesquisas devido à pandemia, depois à variante Ômicron... eu fiquei muito no meu apartamento e o livro foi saindo. É o terceiro que se chama “Viagem ao México”, uma vez que em 2014/2015 eu publiquei por uma pequena editora de poesia do México dois livrinhos muito bonitos, bem experimentais, em espanhol e português, com propostas gráficas muito interessantes.
O Viagem ao México 1 foi quando eu ocupei a cátedra de estudos brasileiros no Colégio do México, uma grande instituição de ensino, e no ano seguinte ocupei a cátedra do José Saramago pela primeira vez, a qual ocupo agora, de novo na Universidade Nacional Autónoma do México. Depois, o mesmo editor me convidou a publicar os poemas, dessa vez em maior número. Então, uma amiga, ex-estudante minha tanto de graduação como de pós-graduação aqui na USP, me pediu essa coletânea de poemas escritos no México para mandar para uma editora em Lisboa, editora de renome na qual ela já havia publicado, chamada Poesia Incompleta. O editor português gostou muito dos poemas mas eu não tinha terminado de escrever, então ele falou que queria publicar quando tivesse com o livro pronto, o que eu achei ótimo. Portanto, foi o primeiro livro na minha carreira de poeta o qual já tinha duas editoras em dois países e duas línguas para publicá-lo antes mesmo de estar terminado.
O livro ficou pronto, mandei pra Portugal e, recentemente, foi publicado. Eu vou daqui uma semana pra Portugal para o lançamento. Vai ser meu primeiro livro publicado em Portugal; eu já participei de antologias portuguesas, já publiquei em revistas, mas nunca tive nenhum livro publicado em Portugal, ainda que eu seja professor de literatura portuguesa. Agora nós estamos terminando a tradução para o espanhol para mandar para o México – em novembro eu estou convidado para um congresso bastante importante de poetas no México na cidade de San Luis Potosí; pretendo ir ao México e depois fazer o lançamento. E, como se não bastasse, uma editora peruana manifestou interesse em publicar o trabalho em Lima. Logo, é de fato a primeira vez na vida que eu tenho 3 países e 2 línguas para um livro que acabou de ser escrito. Eu estou bem contente com essa história.
Lisboa não tem nada que ver. Eu ia de qualquer maneira para Europa, porque minha irmã morreu durante a pandemia e eu tenho família italiana, em Veneza., e Já pretendia acompanhar as cinzas da minha irmã, era esse meu programa para o verão europeu. Finalmente, ao invés de ser apenas uma coisa melancólica, virou algo alegre com essa possibilidade de ir a Lisboa e ter um primeiro livro publicado em Portugal.
SarteL: Você acha que o país, as pessoas do país, os costumes, os locais, influenciaram sua escrita de certa forma?
JH: Não, não especialmente pelo fato de estar no México. Sempre que você escreve você está em contato com seu meio ambiente, certo? O México é um país no qual eu vivi muitos anos; talvez vocês não saibam, mas eu fui professor titular da Universidade Nacional do México, e lá tenho muitos amigos, tem um lado da minha cabeça que é mexicano. Eu não tenho passaporte mexicano, mas até poderia ter, pois é um país que respeito muito, uma cultura que está muito próxima a mim. Nesses seis meses que eu passei lá me comportei muito como mexicano. Eu não tenho muito problema com a questão de ter outras nacionalidades, entendeu?
O México entra como, digamos, uma referência; em alguns poemas há essa relação, o último poema tem muito a ver com México. Mas, quando você está, como eu estive, absolutamente vinculado à escrita de poesia, a escrita de poesia concentrada se dá em lugar nenhum. Ela é o lugar da escrita de poesia. Você sempre conversa com o lugar no qual você está, mas muito mais importante do que o lugar é a escrita mesmo, né? E essa dedicação, essa abertura para escrever no ritmo em que eu escrevi... Porque os poemas fluíram com muita rapidez, e saíram quase prontos. Pouco tive que tocar neles, só corrigi alguma coisa aqui e ali quando ficava muito ruim. Eu nunca corrijo meus textos, procuro corrigir o mínimo possível o que eu escrevo. Boa parte das coisas que eu escrevo já sai pronta. Foi muito especial eu poder me concentrar nessa escrita, fazendo uma pesquisa muito destacada do mundo, imerso na realidade como essa dos livros coloniais. Foi mais a circunstância da vida do que a do lugar.
SarteL: O senhor poderia falar um pouco sobre o tema do livro, sobre os temas dos poemas?
JH: O tema principal é o amor homossexual. É uma questão que tem me preocupado, porque pertenço a uma geração de homossexuais brasileiros que, afinal de contas, lutou muito pela aceitação, pela legalização dos casamentos, pela existência, pela cidadanização da relação entre o mesmo sexo.
O primeiro encontro de pesquisadores homossexuais foi feito lá na faculdade, quando eu era o presidente da ABEH, foi o primeiro grande da USP. A USP, então, já tem muito caminho andado. E, entretanto, eu não gosto do que é definido como um tópico homossexual, porque eu acho que ele é distorcido, de alguma maneira. Aí começa já uma abertura para a não aceitação do amor homossexual. Porque você fala “é heterossexual”, mas ninguém fala “esse bando de heterossexuais”, isso não existe, porque essa é a maioria da sociedade. Então o heterossexual não se refere a si próprio como “heterossexual”, ele se refere a si próprio como “o normal”, “aquele que dá as normas”. Então, o heterossexual é aquele que experimenta o seu amor sem nenhum medo da realidade, ele não tem vergonha de amar; pelo contrário, o amor heterossexual vende muito, até xampu… Vende de xampu a anel de brilhante. A comercialização do amor heterossexual vai do trivial, do sabonete, do xampu, até a tiara. Bota uma tiara maravilhosa, um véu atrás e sai da igreja, um salto enorme, todo mundo babando, certo? Para o amor homossexual não tem essa, não tem essa penetração na sociedade, não tem essa aceitação, e o que eu vejo é que, ao longo do tempo, nas relações mais jovens, o afeto, o tema do amor, foi se desgastando; não se fala mais no amor. Talvez a referência do amor que está desgastada para os jovens seja essa referência comercializada do amor hétero, que leva à família, aos filhos, ao lugar da mulher na sociedade, ao lugar do homem na sociedade, a um discurso de disparidade. Afinal de contas, o amor hétero é, como nós sabemos, uma construção, talvez tenha mil anos: no mundo clássico não era esse o tipo de amor, na primeira idade média não era esse o tipo de amor.
Então há uma espécie de ignorância no amor entre os mais jovens, principalmente os intelectuais mais jovens, o que é uma ação muito perigosa, porque aceitar apenas o amor heterossexual como “o amor” é jogar-se com a água do banho a criança. Porque o amor não tem a ver com isso, o amor é algo mais importante do que a construção do amor heterossexual. Na civilização ocidental há padrões monogâmicos e monoteístas etc, vocês conhecem… E o ponto alternativo, portanto importante, é o amor homossexual na cidadania enquanto amor. Como uma manifestação livre da afetividade inter-humana entre pessoas do mesmo sexo, seja num número binário, ou num número ternário, ou quaternário, ou como for. Eu me dediquei nesse período no México, e, por eu ser casado, e por nesse momento estar vivendo outro afeto além do meu marido, eu senti que eu tinha amor para dois homens. E eu não sinto nenhuma vergonha de ter dois homens. Um marido, dois maridos... Não quero mais do que isso, mas eu senti que podia escrever sobre um amor que não tem como modelo o amor hétero, monogâmico, e que eu poderia talvez aproveitar um momento de disponibilidade para me aprofundar no tópico, e foi o que eu fiz.
SarteL: Como o senhor sabe, sua vida é uma inspiração para nós estudantes, o senhor tem uma carreira acadêmica incrível e uma vida artística maravilhosa. A gente queria saber se o senhor teria algum conselho para nos dar, já que estamos começando agora.
JH: Olha, eu acho que já estou dando conselhos para vocês. Vamos lá, primeiro, conselhos como pessoa: se vocês são de fato da carreira de Letras, se dediquem a ela. É muito difícil. É uma carreira ingrata, no sentido em que você nunca ganha dinheiro, certo? A carreira literária é muito difícil, particularmente no nosso país. Mas o tópico aqui é a pessoa que busca felicidade. Será que se você mudar para uma carreira que te dê mais dinheiro e tenha melhor reconhecimento público, você será mais feliz? Porque o fator felicidade, no fim das contas, é o fator da vida.
Eu estudei arquitetura: sou arquiteto urbanista. Eu trabalhava no Patrimônio Histórico, estava bem, gostava do meu trabalho. Só que eu queria escrever poesia. Eu já escrevia poesia e queria me dedicar a escrever poesia, e queria entender o que era escrever poesia. Portanto, cheguei à Letras porque escrevia poesia, não o contrário. Comecei a escrever poesia e fui pra Letras. E não me arrependo, porque na verdade sou uma pessoa feliz, entendeu? Tenho uma vida em que eu tive e tenho muitos problemas como todo mundo tem, e talvez eu tenha tido uma cota maior de problemas. Tenho a minha escolha e não trocaria, porque faço o que eu quero! E acho ótimo poder agora, na minha velhice, dizer pros jovens que vale a pena insistir. Porque você insiste, e se você continuar insistindo e tiver apoio... outro ponto: você tem que se apoiar. Toda inteligência é inteligência prática. Inteligência só teórica não é inteligência, é teoria. O bom da inteligência é a inteligência prática. Você tem que se apoiar, você tem que encontrar gente que possa te dar apoio. Tem que encontrar nas instituições a possibilidade de elas facilitarem o seu desenvolvimento, e aceitar os percalços da vida assim como as oportunidades que a vida leva e não desistir do caminho. Talvez eu seja muito otimista, mas comigo funcionou. Então essa é a minha resposta.
Não transigi, fiz literalmente o que eu quis. Nunca fiz nenhuma coisa doida. Eu fiz o que eu quis, considerando a realidade, as constrições do real. Tenho uma percepção do real desenvolvida, e acho que o real é o real. O real é o reino. Agora, a possibilidade de você criar literariamente, de você estudar literatura e produzir textos literários…Mesmo o fantasma do erro, sw buscar a perfeição, de querer fazer aquilo que é perfeito, o melhor poema, dizer a palavra final... tudo isso é uma babaquice. A escritura criativa é boa para o leitor se ela é boa para o escritor. O leitor percebe quando o escritor está forçando, quando não é natural. Porque o leitor, no fim das contas, está reescrevendo com você. Pelo menos assim penso eu. Então, deixar de lado o fantasma da perfeição e da autoexigência castrante, e passar ao plano superior de orientação, de manter o espírito crítico e seguir adiante. E, depois, num lado específico da vida acadêmica, só estudar academicamente (ou seja, teses e dissertações etc.) que houver paixão. Porque se não houver paixão, vai ser um estudo a mais. E algo que não é feito na base de uma empatia grande, como o texto que se está desenvolvendo, acaba por ser um exercício sobre um tópico. E o envolvimento subjetivo passional de quem escreve agrega algo mais, que é a necessidade de estudar aquele tópico e de compartilhar com a comunidade científica, com seus pares e com os leitores, com os mais jovens, aqueles que você viu ou está ainda descobrindo. É isso.
Há uma mentalidade em faculdade de crítica literária, a meu ver, muito equivocada. Vocês não têm que estar numa faculdade de crítica literária, vocês têm que fazer da Letras uma faculdade de Letras. E isso é ter oportunidade de falar dos seus processos criativos, de estudar, ler os seus diários com outras pessoas, compartilhar suas coisas, escolher os professores que botam lenha na fogueira de vocês, e não quem está castrando vocês, moldando vocês pra entrar no processo do letramento segundo o padrão da universidade brasileira. O esforço é demasiado para você ganhar mil reais por mês. Não é só isso que você faz por Letras. No futuro os empregos de letras não vão ser necessariamente os de docência; você vai poder, em Letras, acompanhar gente de outros lugares. A demanda pela expressão, pela palavra na sociedade é muito grande. As pessoas querem falar, elas querem escrever, elas querem se expressar, elas querem ter conhecimento. Os velhos querem recuperar o tempo perdido. As favelas querem poder escrever como os que são, er… “educados”, os “educados” querem falar outras línguas, todo mundo quer outra coisa, certo? Não precisa ser só o modelo atual, da crítica literária citacional, que eu acho que está muito desgastado, que precisa ter um monte de citação, de referência, de fazer como fulano, fazer como sicrano, ter um modelo x e um modelo y. Eu sou... se vocês querem saber, eu sou um libertário, tá? A minha vida foi uma vida de experimentar limites de liberdade, de realizar atos de liberdade, e eu continuo assim e pretendo morrer assim. O meu conselho pra vocês é esse, não se deixem dominar, procurem ter os seus momentos de solidão, momentos de solidão expressiva. Pronto. Exprimam e escrevam, expressem-se, espremendo-se, e pronto. Espero que vocês consigam conciliar, porque também é bom ter doutorados e, no caso de vocês, conseguir dar um recado legal na universidade, entrar nos programas universitários. Mas não é o único horizonte.
Por Julia Lopes, Gabriel Petryla, Gabriela Freitas, Aryadne Bonotti e Rafaela Martinelli.
Revisado por Leo de Freitas Montagner