As Crateras Desvairadas 

Gustavo Henne Gonçalves 

Faz tempo que não consigo dormir, a minha mente não para, muito menos a dor em meu corpo. Desde o aumento dos acidentes, os momentos têm passado mais lentamente, como se o mundo estivesse centrado a observar uma lesma se rastejando. Não, é somente a espera do colapso. O colapso está para acontecer há muito tempo, só que agora parece ter data marcada, mesmo quem não tem acesso às informações e às pessoas sabe disso. Eles são deixados de lado, solitários, nem pedem mais esmola, sabem que não vale a pena: ninguém tem tempo, ninguém tem misericórdia e ninguém pode ter. Enfim, o trabalho continua tal como o sol continua a nos iluminar. 

Enquanto o sol continua como se na terra não houvesse colapsos, a dor é grande: pessoas morrem, a natureza morre, a foice da morte cegou de tanto uso. Por isso, preciso dar esse grito, caso tente abandonar essa vontade não serei apenas um morto-vivo, mas sim uma alma perdida nesse mundaréu de pessoas cinzas, ou talvez eu suma num acidente. Os acidentes agora são comuns, ontem uma cratera nova, semana passada uma explosão, amanhã o quê? Não sei, sei que haverá algo, não há descanso, o tempo não para

Há apenas um grupo que continua em paz, esses são os mesmos que constroem grandes fábricas, responsáveis por acidentes, melhor: responsáveis por começar o colapso. Agora só restam cinzas e covas, para eles não, ainda nos tem, seus escravos, máquinas que não conseguem dormir, que não têm o que comer sem eles, que não têm o que fazer. 

Meu pai era um dessas posses, todos os dias montando peças e peças e peças e peças e mais peças, chegava no meio de nós nem sabia mais se reconhecer, ficava catatônico de tão pesado que é o ambiente, de tão nojento que é o tratamento, de tão repetitivo que são os processos: um lugar escuro, fedido, repetitivo. Porém, ele e mais alguns não se preocupam mais em montar tais peças, pois após mais um acidente ele e essas pessoas foram ceifadas. Uma cratera abriu-se no chão, parte da fábrica foi engolida, deu para ver com minha mãe o grande líquido preto que foi jorrado, após alguns minutos várias máquinas foram absorver o tal líquido vital. Já aos dependentes dos ex-vivos, nada, nem uma ajuda, nem uma palavra, nem um tapa nas costas. Meu pai se foi, não que ele estivesse vívido antes, há tempos que não o via esboçar um sorriso, ou um ato próprio, só dizia de parafusos. Porque os parafusos eram úteis, os parafusos haviam sido feitos pelos americanos para montar o carro e sei lá mais o quê. Sei que agora gostaria de lembrar a origem do parafuso, mas ele foi levado, e resta a mim cuidar do que ele deixou. 

Resta a mim cuidar da nossa família, devo agora focar nos processos de montagens, e ver se consigo ser o dito homem da casa, casa, que casa? A situação nos obrigou a viver em barracos, debaixo de uma ponte, não só minha família, mas sim várias famílias, pois um dos ditos acidentes consumiu uma rua e várias pessoas, e mais daquele líquido vital jorrou, foram vários jatos. Minha irmã se foi, nossos gatos, quase desnutridos, se foram, creio que foram mais de vinte pessoas, mas todos que estavam lá saíram no mínimo feridos, mal sei como sobrevivi. Aquele grupo das montadoras nem esboçou pena, no outro dia os processos continuaram normais, meu pai mal pôde se despedir da Ana… mal pôde cuidar de nós, o tempo não para. 

Nossa casa se resume agora a paredes de madeira pregadas, a porta é um lençol fedido, já que se molha constantemente, as chuvas não param, e o telhado são ripas reaproveitadas dos destroços da nossa antiga rua, agora uma cratera. Nossos móveis foram resgatados pelo nosso pai e por mim, nós e mais alguns fomos na cratera ver o que havia sobrado: tudo sujo e gosmento, aquele líquido fica preso, perdemos muitas roupas. Nossa sorte é que as máquinas haviam sugado boa parte. Ah, os dias antes de resgatarmos as coisas foram horríveis, não gosto de lembrar. Mas, mesmo depois disso, a dor continuou, mesmo que atenuada. 

II 

Agora que faço os chamados processos sei como isso traz tormento à alma e ao corpo, sentir aquele cheiro de óleo queimado, aquela falta de atenção humana, aquele calor grudento e aquela coisa pior: o trabalho sem fim. Não temos relógio, o tempo passa devagar, cada parafuso colocado é uma eternidade, gira e gira e gira e gira e gira e gira sem fim, chego onde sobrevivo, aquele barraco, e vejo minha mão girando ainda. 

Na fábrica que reformou (rapidamente, aliás) ouvi dois chefões rindo. Ouvi eles conversando enquanto fumavam, meu lugar fica num dos poucos lugares em que há janelas. Enfim, eles não fazem questão de não parecerem desumanos. 

O primeiro chefe, acho que era o planejador dessa indústria, é o tipo de gente em que se sente arrogância: dentes alinhadinhos, malhado, cabelo certinho, enfim, cheio de grana e de tempo, mal o via na fábrica, seu nome é Luiz. O outro era mais velho, não se importava com a aparência, mas nem por isso deixava de ser cercado por mulheres, eles as comprava, gente da nossa gente, todos precisam de dinheiro. Enfim, ele tem um bigode, cabelo ralo, e não tem pescoço, mas o pior é seu cheiro, um homem muito porco, nunca se arruma, seu nome é Walter. 

Luiz, sem nenhuma preocupação começa a criticar seus empregados 

- Esse povo é muito burro, fazem qualquer coisa por grana, queria saber o que fazem com essa merreca. 

- Ah!, acho que gastam com loteria, jogos de azar, sei lá!, para passarem tantos por tantos problemas, a última coisa que fazem é usar bem esse dinheiro - Walter responde, rindo como se tivesse visto alguém tombar. 

- Será que eles sabem? - Luiz fala com cara de deboche. 

- Do que? 

- Do que!? - Luiz começa a gargalhar 

Os dois saíram rindo, me pergunto do que eles tanto riam, acho que foram para alguma festa, algo assim. Porém, não tenho mais tempo para pensar neles, tenho muitas preocupações já, só queria poder relaxar como eles. Nossa, nem me lembro da última vez que encostei no muro à toa, com certeza foi antes do meu pai morrer, talvez antes dos acidentes começarem. 

III

Depois de muito trabalho não me reconheço mais, mas o que vale é ver minha família alimentada na medida do possível, com o trabalho consigo apenas comida e água. Minha mãe compra em um mercado, daqueles que sintetizam na hora, não tem o melhor dos gostos, mas é limpo. Como é bom beber aquela água após um dia de trabalho. Minha mãe disse que ouviu no meio de uma multidão um homem gritando, ele arrancava os cabelos e dizia: 

- Ouçam! Vamos todos morrer, essas fábricas estão apenas construindo robôs para os ricos saírem desse corpo frágil e mortal, eles vão vazar da terra, o que será de nós após isso!? 

Minha mãe disse que as pessoas começaram a rir, perguntando como que pequenas peças virariam os tais robôs, como que um humano poderia passar a sua mente para um desses robôs, ele saiu correndo, apareceu morto uns dias depois. Isso me fez pensar muito, não sei se ele foi morto, até porque ele parecia estar bem doente, como minha mãe havia dito, enfim, ele me fez pensar nos objetivos dos processos, para que servem essas construções? Lembro que antes, como meu pai dizia, a nanotecnologia fazia milagres, mas há alguns anos a sociedade basicamente ruiu. A única garantia é para quem tem dinheiro, não existe mais nada para todos, só o trabalho e o sol. Penso nas risadas de Walter e de Luiz, será que o louco gritava verdades? 

IV 

Algumas semanas se passaram, começaram a realocar pessoas, novas fábricas surgiram, mas os equipamentos e as peças mudam como dizem. Eu continuei na mesma, girando parafusos. Apenas surge um novo supervisor, há algo estranho na voz e no olhar dele. Nada para me preocupar, afinal, só preciso continuar a fazer meu trabalho. 

Porém, para um cara isso não é normal, para Gabriel não. Quando eu estava indo para casa ele me para, e passa a conversar comigo, achei estranho pois nunca falo com ninguém. - Não é você que teve o pai morto em um acidente? - diz de modo rápido - seu pai tinha um coração de ouro, filho, Samuel me ensinou muito. 

- Sim, eu sou filho dele. - eu disse. 

- Então, você não achou o novo supervisor estranho? Eu juro que não vi ele piscando, bora tentar conversar com ele amanhã? 

- Ah, não sei, para quê? só a gente não mexer com ele, né? - eu disse cabisbaixo. 

- Tem que conhecer ele, sabe?, vamos ficar naquele lugar por muito tempo com ele. - ele disse me olhando como se olhasse para sua última esperança. 

- Beleza - eu disse já indo embora. 

Cheguei em casa, sentei no chão e pensei se faria aquilo ou não, eu concordei com ele apenas para ele ir embora. Porém, aquele supervisor me incomodava, ele não parecia humano. Algo passa em minha mente “essas fábricas estão construindo robôs”, será? "Será que eles sabem?”. Não podia ser, eles realmente vão fugir, vão abandonar a terra. 

Acordo determinado a me juntar àquele cara, mas, ao chegar na fábrica ele não estava em seu posto, perco a coragem, e nunca mais vi Gabriel. Contudo, passei o dia prestando atenção no robô, acho que ele me percebeu. Mas eu percebi ele também, dentro dos olhos dele não há almas, somente há um brilho estranho, perderam o resto de humanidade que tinham.

Ouço um estrondo, olho pela janela, só é possível ver aquela fumaça enorme subindo, sinto dentro de mim, sim, a ponte caiu. Meu peito se aperta, minhas mãos tremem, sinto escorrer o suor pela minha cabeça, na minha mente só me vem minha mãe. Que vida, mais um acidente. Todos mortos. Vou embora correndo, vejo os destroços, os gritos e sei que ninguém irá socorrê-los. Tento cavar, não vejo nada, nada e nada. De repente surge o humano sem alma, aquele robô. 

- Volte ao trabalho, a empresa precisa de você, o tempo não para. 

- Mas, minha mãe, meus irmã… - tentei continuar, mas a voz não saia - Volte ao trabalho, a empresa precisa de você, o tempo não para. 

- Meu Deus, como pode, acabo de perder toda minha família, você não tem o mínimo de compaixão, mais um “acidente”, culpa dessa merda de empresa, tudo isso para quê? - disse salivando, minha tristeza se tornou ódio. 

- Volte ao trabalho, a empresa precisa de você, o tempo não para. - ele disse no mesmo tom e me agarrou pela camiseta e começou a me arrastar de volta à empresa, por mais que eu lutasse ele conseguiu. 

Vem aos meus ouvidos um grito abafado, identifico a voz da minha mãe, ela gritou “Rafa! Rafa, vem para sua mãe!”. Em pouco tempo acabará seu ar, não posso fazer nada, não há quem possa fazer. 

No fim do dia voltei lá, sabendo que todos estavam mortos, deitei sobre os destroços, lembrei de como era antes dos acidentes ficarem tão recorrentes e absurdos, nossa família reunida, nossa casa, a felicidade era tão boa. O abraço da minha mãe era tão quente, agora aqui está tão frio. Sua voz ecoa ainda dentro de mim, um clamor sufocado. A dor continua. 

Não conto mais os dias, todos são iguais. Poucas coisas mudaram desde a partida de todos, quanto tempo passou? Dias, semanas, anos? Sei lá, sei que o tempo não para, aprendi da pior forma, obrigado a trabalhar mesmo após aquela tragédia, meu coração ainda dói de pensar. Aquilo foi muito desumano, o que mudaria…? Não adianta pensar, só vai doer mais. Mas vejo mais daquele tipo de gente arrogante, com aquele olhar brilhante, sem alma. Mais robôs, mas agora revelados, aquele supervisor era apenas um teste, acho que deu errado, ele era muito duro, os outros são quase inconfundíveis com pessoas, com a exceção do olhar. 

Eles se revelaram, nas empresas disseram o objetivo dos processos, aquele mesmo maldito supervisor. 

- Atenção! Atenção! A partir de hoje verão mais pessoas como eu andando por aí, pessoas perfeitas, as quais não precisam comer, não precisam de sol e de ar, não precisam de nada, o homem imortal! Todo esse tempo em que ficaram fazendo os processos tão importantes, estavam nos montando. Que honra tiveram! Mas agora acabou, podem ir para as ruas, o tempo parou para vocês. - ele disse isso de forma pausada, sílaba por sílaba. 

Desde então as pessoas passam mais fome, e aqueles que haviam sido realocados estavam construindo pequenas naves, que agora todos nós vemos voando por aí, é muito estranho, eles têm essa alta tecnologia, e nós passamos fome aqui. Por pouco arranjei uma casa, estava abandonada, houve competição por ela, no final a divido com mais seis pessoas.

Cada dia o colapso parece mais perto, nada mais cresce, a cor verde sumiu da terra. Cada dia mais as pessoas morrem, por acidentes, por doenças. Nesta cidade, onde viviam muitas pessoas, muitos rostos sumiram, outros estão muito mais feios, são poucos os rostos que se tem ainda. Meu rosto está cada dia pior, o luto que passei me tornou mais feio, agora a fome, a tosse, não sei quanto tempo ainda tenho, parece que o colapso vai surgir em cada um, devagar, tal como o supervisor pronunciava sua fala. 

Todo aquele líquido preto sumiu, parece que usam como sangue, digo isso pois vi aquele supervisor se machucando, daquele corte saiu o líquido, foi muito rápido. As naves parecem funcionar usando energia solar, me lembro do meu pai falando dela, era tão linda, parecia uma solução divina, mas nunca foi realmente aplicada. 

Queria saber como que montaram essa tecnologia toda, como que aquelas peças estranhas se tornaram isso, sempre eram levadas durante a noite, deve haver mais fábricas em lugares que não conheço. Será que seremos esses robôs também? Até agora estão somente nos largando morrendo, há apenas membros daquele grupo tornando-se essas máquinas. Vi Luiz, o chefe arrogante, agora com aquele olhar estranho, ele estava no fechamento da fábrica, ouvi até ele conversando com o supervisor. 

- Finalmente esse povo está ciente, a questão é, será que entenderam? - disse ele rindo. 

- Não sei, o tempo parou para eles. - disse o supervisor pausadamente. - Uma pena que não deu muito certo para você, um dia te consertam. - disse com uma voz pesada. 

A voz de ambos foi se afastando aos poucos, depois fecharam a fábrica. Sinto falta dela, odiava o trabalho, mas, ao menos, comia. A fome dói tanto, ninguém mais tem dinheiro. Só penso em uma coisa, o que tenho a perder? Cada dia mais os acidentes são mais recorrentes, temos que comer lixo, mato cinza, os robôs nos desprezam, todos os dias são mais naves indo para Deus sabe onde, não quero mais viver, quero me juntar a minha família. Não tenho muito tempo, metade da cidade está destruída, a violência aumentou bastante, caso eu não me mate, essa terra o fará. 

VI 

…Não vejo mais nenhum robô por aí, e são poucos os rostos que vejo, muito menos os conhecidos, não há mais naves no céu, mal o sol é possível ver. Não tenho mais do que comer ou beber. Meu rosto, na verdade, está tudo cadavérico, um purgatório, pior, um inferno, mas não fizemos nada para isso. Acho que é o fim, queria que tudo voltasse, antes dos acidentes começarem. 

Espero que o além daqui seja bonito, cansei do cinza, cansei da dor, cansei do frio, cansei dos dias lentos, cansei da repetição. Para onde será que foram?