Boa noite

Vinicius de Silva e Souza

 

Ele: está organizando os moveis que o carreto trouxe da mudança. Os homens andam para lá e para cá, com seus sapatos enormes, alguns montando moveis, outros ajeitando a mesa e uns terceiros ainda chegando com caixas do caminhão. Se mudando pela primeira vez, ele pensa que jamais imaginou que se mudar dava tanto trabalho, caramba. Ainda bem que as coisas dela já tão aqui, comenta com os homens. Os mais próximos riem, concordam:

—Pois é.

E logo em seguida perguntam onde colocam tal coisa.

Ele se sente uma barata tonta, andando por todos os lados do apartamento. Já percorreu cada centímetro dos noventa metros quadrados que agora lhe pertence -e tudo que sente é aquela excitação misturada com alegria e ansiedade e felicidade. Ainda é difícil processar que está organizando o apartamento onde irá morar com sua namorada. Depois de tantos tantos anos de namoro, finalmente vão morar juntos. E não foi nada fácil. Evoluíram de “casal contente no comecinho do namoro que se vê só aos fins de semana” para “casal maduro com problemas sérios e quase términos” até, finalmente, chegarem em “casal saudável que conversa e resolve tudo”. E, depois do quarto ano de namoro, quando chegaram naquele momento da vida em que renda e emprego estão mais estáveis e os estudos se encerraram, fazia sentido para eles morarem juntos. Nenhum dos dois tinha condições financeiras de bancar um lugar, nessa cidade tão cara, sozinho. E queriam, mais do que tudo, estar junto. O tempo todo. Acordar juntos. Sair para trabalhar juntos. Ter um longo e cansativo dia de trabalho para depois voltar para casa, voltar um para o outro, para conversar deitados no sofá, ouvindo música, assistindo tv, um cozinhando enquanto o outro prepara a mesa, jantar com um vinho tinto barato qualquer, transar devagar e depois dormir abraçados para mais um dia. Sonhos cotidianos assim eles cultivaram, durante um bom tempo. Enquanto passeavam pelas avenidas e bairros, a pé ou dentro do uber, não conseguiam deixar de olhar para os prédios enormes e acesos e dizer “já pensou se a gente morasse aqui?” e “cê moraria aí?” ou “putz, morar aqui deve ser top hein”. Por longuíssimos anos eles cultivaram esse grande sonho embrulhado em cotidianos devaneios. E era sempre ele quem dizia coisas como “relaxa, bebê, vai dar certo, a gente tá fazendo tudo certinho. Uma hora vai acontecer.” Agora, parado no meio do apartamento sendo montado, com seus poucos moveis recém chegados dividindo espaço com os moveis dela que chegaram ontem, ele olha em volta e caminha por todo o apartamento para checar tudo mas também para se certificar de que: aconteceu. Eles finalmente têm um apartamento.

E não foi nada fácil o percurso de “decidir ter” até efetivamente “ter” o apartamento. Cogitaram longamente um aluguel, pesquisaram bem. Mas acabaram decidindo que não, era melhor comprar logo um. Que se fosse muito muito difícil alugariam, claro, melhor dividir o aluguel do que não dividir nada. Mas que, a princípio, seria muito muito melhor se pudessem comprar um logo. Então se esforçaram pelo plano principal: pesquisaram preços, olharam financiamentos. Usavam os sábados para andar por aí olhando placas de “vende-se” e ligando para elas, agendando visitas. Baixaram no celular aplicativos desses sites que vendem tudo, checavam sempre os aplicativos quando estavam no banheiro, no metrô, antes de dormir. Uma dedicação imensa eles tinham. Chegaram a uma quitinete perfeita no centro; mas o dono queria metade do valor como entrada. Acharam um com dois dormitórios muito bom na zona sul; mas ela achou a cozinha pequena demais. Encontraram um perfeito na zona leste, com varanda e tudo; mas ficava a um quilometro da estação de metrô mais próxima e o percurso era cheio de subidas por trechos perigosíssimos a noite. Suspiravam, no metrô, ela com cabeça deitada no ombro dele, depois de mais um sábado frustrado. Difícil, era bem mais difícil do que imaginavam. No começo, ele até disse para ela não se preocupar com financiamento, que ele resolveria tudo. Mas em meio a tanta confusão de opções, valores e juros, acabou aceitando que ela participasse dessa parte do processo também. Foram longos meses, o ano até virou o próximo no meio disso, e eles felizes, comemorando o ano novo quando deu meia noite, mas sentindo o gosto amargo da frustração no fundo do peito por começarem um novo ano ainda morando na velha casa dos pais. Até que, fevereiro seguinte, finalmente, deu: acharam um apartamento bom, três dormitórios, varandinha singela, por um preço totalmente dentro do orçamento. O dono, estava doido para vender. Eles, doidos para comprar. Tudo nos conformes. Um mês e meio depois, com tudo assinado, escritura em mãos, apartamento esvaziado, lá iam eles. Hesitaram bastante antes de fechar a compra, ele mais receoso do que ela. Mas depois de conversarem, percebeu que, entre pros e contras, não havia nenhum contra naquela compra. Ele estava apenas com medo de dar um passo tão grande assim. Medo de deixar passar outro apartamento ainda melhor por um preço mais vantajoso. Ela então lhe disse que se fosse pensar assim, jamais compraria nenhum apartamento nunca. Que aquele tinha todos os pontos certinho, tudo que queria (o número de dormitórios, o tamanho, a distância para metrô). que estavam tão cansados de procurar. Então ele decidiu: era isso. Se sentiu grato por ela, mais uma vez, agir como voz da tranquilidade quando ele era possuído por medo e receio assim. Quantas vezes ela já não tinha cumprido esse papel nos tantos anos que estavam juntos. Como tinha menos moveis (“tralhas”, como ela mesma disse), ela acabou mandando o carreto um dia antes. Pediu apenas que deixassem as coisas lá. Agora, ele trazia as coisas dele e logo mais ela chegaria, com seus últimos pertences, para ajeitarem tudo e começarem a morar na casa nova. Os dois. Juntos. Na mesma casa. Morando juntos. Ele mal pode acreditar. Tudo que sente é mesmo tudo aquilo: excitação misturada com alegria e ansiedade e felicidade. Mas, contido, em segredo, resguardado, bem ali no fundo, no canto mais estreito, ele também tem medo. E insegurança. Medo de como seu individualismo vai lidar com a necessidade de ceder frequentemente. Na hora de escolher o que comer. Onde ir comer. Como decorar a casa. O horário de tocar violão. O que assistir na tv. Medo de novas brigas brotarem da nova dinâmica de “casal que mora junto”. O assusta, apavora ao máximo pensar que, talvez, não sentido mais tanta saudade, já que a verá constantemente, o amor definhe aos poucos. Não o amor amor, mas. A vontade de abraçar, de deitar na cama, juntos, grudados. De beijar, de transar o tempo todo. Medo de começar a se irritar com ela, e, principalmente, medo de lenta, gradualmente, aos pouquinhos, sem sequer perceber, irem se afastando. E se afastando. E se afastando. Até se tornarem a pior coisa que existe, na visão dele: o “casal que está junto há anos e anos, casado, e que já não se suporta mais mas apenas segue junto por conveniência”. Suspira. A pior parte de ter esses medos específicos não é tê-los, e sim, não poder dizer a ninguém. Não poder dizer a ela. A pessoa em quem mais confia, sua grande voz da razão. Tem medo da reação dela ao ouvir os medos e inseguranças que sente. Certamente ela ficará triste ou. Angustiada. Ou perguntará se ele quer cancelar tudo então, cada um voltar a morar onde morava antes. Toda uma série de dores que ele não quer causar. Então por isso, vem guardando tudo em segredo, a insegurança como uma sobremesa depois da longa refeição de alegria e ansiedade que é pensar e falar sobre morar juntos. Suspira. Checa o celular. Dez para o meio dia. Estranho. Ainda nenhuma mensagem dela.

Ela: acorda onze e dez da manhã. Tão incomum acordar tão tarde. Mas bom,... aconteceu. Pegou o celular, olhou a hora. E botou de volta no criado mudo, sem desbloquear e checar nenhuma rede social nem o whats app. Se espreguiça, se estica toda, tentada a rolar para o outro lado da cama, se embrulhar, voltar a dormir. Mas não pode, precisa levantar. Precisa ir ajuda-lo a arrumar a casa nova. Passa um braço pelo lençol, pelo pedaço vazio na cama. Nunca mais terá um pedaço vazio na cama. Sorri, alegre, ao constatar, lembrar disso: nunca mais um pedaço vazio na cama. As pernas, nunca mais soltas também: para sempre enroscadas nas dele, como ela gosta de fazer. Vai ser tão bom. Faz tanto tempo que sonham com isso. Há tempos que vem sonhando com uma rotina em uma casa com ele, e não com os pais. Nada de jantar tarde da noite, como costuma fazer, porque o pai chega tarde do quartel onde trabalha. Nada de almoçar no shopping, em praças de alimentação lotadas, aos domingos, como os pais gostam de fazer. E nada de assistir programas aleatórios em canais aleatórios na tv. Não, nada disso, nunca mais. A partir de hoje, tudo será diferente. E ela gosta dessa frase: a partir de hoje, tudo será diferente. Suspira. Como uma boba adolescente apaixonada.

Finalmente levanta. Tentada a abrir o whats app e responder as mensagens que ele certamente mandou, ela resiste. Melhor fazer as coisas com calma primeiro. Tira a roupa, pega a tolha, toma banho. Lava o cabelo, devagar, passa hidratante no corpo todo. Veste a roupa de sair, se olhando no espelho e pensando que precisa tomar café. E encarar os pais. Suspira. De preocupação dessa vez. Eles sabem que irá se mudar, claro que sabem. Quando decidiu morar com o namorado, chegou em casa felicíssima, mas escolheu não contar logo para eles. Foi dormir sem saber porquê sentia o medo que sentia. Concluiu que não era nada demais, preocupação apenas, pra que tanta ansiedade em contar, afinal?, não mudaria nada dizer um pouco depois de ter decidido. Não era como se fosse se mudar tão rápido assim. Na manha seguinte, quando sentou para tomar café, trocando mensagens com ele e sorrindo para o celular, o pai comentou:

—Filha, vamo desgrudar desse celular e comer direito, vamo?

A mãe, fatiando um pão, lhe sorriu maliciosamente:

—Tá mais animadinha do que de costume nesse celular hein.

Ela ergueu as sobrancelhas, pega de surpresa. E acabou contando. Contando que ontem, no rolê com o namorado, eles conversaram e decidiram que era hora de morar junto. Os dois formados, com bons empregos, ganhando mal separados mas fazendo uma boa renda juntos, era hora, ela contou. E, para não olhar para os pais e ver qualquer reação nos rostos deles, pegou um pão e começou a corta-lo ao meio. 

—É, a mãe começou. —Se é o que vocês querem... e acham que conseguem... por quê não né?

—É, mas tem que procurar bem hein, o pai alertou. —Olhar direitinho aluguel, fazer contrato... tá cheio de pilantra por aí.

Ela sorriu com o canto dos lábios, aliviada. Não sabia porque esperava uma reação muito diferente, muito rígida dos pais. Não era adolescente, eles conheciam o namorado, estava tudo certo. Mas um pequeno trauma de filha única, talvez, tivesse se apossado dela e a feito temer a reação dos pais ao rompimento completo do grande laço que os unia: morar juntos. Morava com eles desde... sempre. Desde que nasceu. Realmente, pensando assim, era um gigantesco passo, esse que estava dando. Para ela, acima de qualquer pessoa. Mas tudo que sentia era ansiedade. Excitação. Queria o quanto antes dividir teto com ele.

E os pais até que foram bem solícitos e úteis durante a busca por apartamento. Disseram não ser boa ideia recusar o aluguel e partir para financiamento, mas respeitaram a decisão do casal. Indicaram financiamentos, explicaram coisas de taxas de juros e tudo mais. Quando ela disse que finalmente tinha achado o lugar ideal, perfeito, mostrou o anúncio e fotos para os pais, ansiosa. Queria muito que eles também dissessem que era perfeito aquele apartamento, que era ótimo, que se empolgassem como ela estava empolgada. Não foi o que aconteceu. Única reação que tiveram foi concordar que realmente, não tinha nenhum contra aquele apartamento específico, que parecia bem bonzinho mesmo. O pai repetiu:

—É, mas olha direitinho, visita, conversa com o dono... sabe o que é bom? Falar com os vizinhos. Com o síndico. Visitar o apartamento fim de semana, a noite assim, pra ver se num tem fluxo, num tem bar barulhento perto, tendeu?

Ela concordou com tudo, balançando a cabeça, um tanto frustrada. Mas tudo bem. Sabia que, no fundo no fundo, a opinião mais importante era a sua e de seu namorado. A casa seria deles, afinal. E o que ambos sentiam era que: essa era a casa. Então estava tudo certo.

Durante toda a semana da mudança, ela comentou com os pais que iria rolar no domingo, que estava ansiosa, que precisava encaixotar logo as coisas, pediu ajuda para desmontar os poucos móveis que tinha no quarto. E agora, domingo de manhã, quando o dia finalmente chegou, ela ainda hesita em sair do quarto, temendo o momento em que tomará o ultimo café da manhã com o pai e a mãe dividindo teto com eles. Ri, sozinha, ao pensar “fica falando que é o ultimo café da manhã, mas já pensou se acaba morando com eles de novo aos quarenta, divorciada, mãe solteira e falida?”. Pensa em seguida “ai, credo”. A mão na maçaneta. Abre e sai do quarto.

Apenas a mãe tomando café, assistindo tv. Avisa que seu pai foi cortar o cabelo. Em silêncio, ela senta na mesa e serve café, mastiga um pão enquanto finalmente desbloqueia o celular e encontra mensagens dele, dizendo que já está tudo no apê, só falta ela. Ela sorri, contente. Tá tudo lá, só falta. Respira fundo. E solta um longo bocejo. Dormiu pouco noite passada. E se permite sentir o que vem guardando sozinha dentro de si: medo. Tem tanto medo de morar com ele. Vem pensando, sentindo coisas não tão boas assim há semanas, mas não tem coragem nenhuma de contar para ele -e é o que mais precisa no momento. É tão estranho sentir coisas e não compartilhar com ele. Mas tem medo de dizer para ele que está com medo de morar com ele. Com medo dele acabar se enjoando dela, já que irá vê-la todo dia, o tempo todo. Com medo das coisas mudarem muito porque elas estão tão boas como estão, do jeito que estão. Com medo de que estejam dando um passo maior do que a perna que tem juntos. Ela está morrendo de medo de dizer para ele tudo que sente por medo de magoá-lo, de frustrá-lo, de ver a expressão do rosto dele mudar de tranquilidade, alegria, para tristeza, angústia. Já viu isso acontecer tantas vezes, já causou isso tantas vezes. Não quer fazer isso de novo. Mas agora só falta ela. Não há escapatória. Não há como fugir ou voltar atras. Digita para ele uma mensagem dizendo que mal pode esperar, que logo logo estará lá e o apartamento estará completo. Ele responde com uma figurinha fofa. Ela sorri.

—Que horas que cê vai? -a mãe pergunta, desligando a TV.

—Daqui a pouco. To pronta já. E ele já tá lá.

A mãe sorri:

—Ansiosa hein.

Temerosa, isso sim, ela pensa.

—Bastante, ela responde.

A mãe se levanta, a abraça por trás, lamentando, em tom de brincadeira, “meu bebê vai sair de casa!”. Ela ri e abraça a mãe, dizendo que sempre voltará para visita-los. A mãe responde que é bom mesmo que faça isso. Continuam conversando enquanto ela termina de comer, escova os dentes e arruma o quarto e uma mochila com o que sobrou para levar. O pai chega nesse meio tempo e se ajeita também. Pronta, ela para no meio da sala e diz:

—Vamos?

Ela boceja longamente no carro, enquanto o pai a dirige para o apartamento, e a mãe pergunta se está cansada. Ela responde que um pouco sim, teve uma semana agitada. Oculta de todo mundo que dormiu mal por conta da crise de ansiedade que teve assim que deitou na cama, ao pensar que no dia seguinte iria se mudar e não teria mais jeito de resolver todos os medos. Tenta dormir cedo hoje, o pai aconselha. Ela balança a cabeça, indiferente. Rapidamente chegam ao prédio, que não fica muito longe da casa dos pais. Ansiosa para vê-lo, ela desce do carro e anda na frente em direção ao elevador. Embarcam os três, sobem. Quando a porta abre, ela corre e abraça o namorado, que, pego de surpresa, sorri e passa os braços em torno dela também:

—Ufa, finalmente você chegou.

Ela ergue a cabeça e lhe dá um selinho. Os pais o cumprimentam e entram no apartamento, olhando ao redor:

—Ah ficou muito bom viu. Bem jeitosinho.

—Ah eu só botei os móveis no lugar. Ainda falta bastante coisa.

O pai senta no sofá:

—Isso aí arruma com o tempo, por ora tá... tá bom assim.

Ele senta na poltrona, ela senta em suas coxas e olha também, surpresa. Nenhum vestígio de pó no chão, os móveis em seus lugares, a tv ligada. Tudo certo.

—Falta pintar, falta... por uns quadros nas paredes. Falta comida na geladeira, ele diz e ri. Começam a conversar os quatro, por um bom tempo, até o pai perguntar se não querem almoçar. Eles erguem os ombros, dizendo que pode ser. Entram no carro e vão para o shopping mais próximo, comer na praça de alimentação. Ela boceja, no carro, e ele pergunta se ela tá com sono. Ela responde que sim, que dormiu mas ainda tá cansada. Ele franze o cenho e pergunta:

—Ué, mas você não acordou tipo, quase meio dia?

—Pois é, e ainda assim to com sono.

—Nossa. Vamo dormir cedo hoje então.

Ela concorda e acha engraçada a semelhança dele com o pai. Chegam no shopping e procurando por um bom tempo até encontrarem uma mesa na praça de alimentação. Depois de comer, passeiam um pouco e quando finalmente vão embora, já é noite. 

—Podem ir na frente, a gente chama um uber, ela diz para os pais, parada com o namorado na porta do shopping.

—Certeza?

—Uhum.

—Tá bom.

Os pais a abraçam longamente, se despedindo. Abraçam o namorado em seguida, lembrando que tinham combinado de jantar juntos no sábado seguinte. E vão.

—É, eles vão viver na nossa casa né, ele pergunta, o braço atravessando os ombros dela.

—Ou viver convidando a gente pra ir na casa deles, ela ri.

Se abraçam, se beijam. Não disseram mas estavam doidos para ter um momento sozinhos e celebrarem juntos aquilo. Ela chama o uber e enquanto esperam, ele sugere dela tomar um banho e relaxar enquanto ele vai no mercado buscar um vinho e uns hamburgueres para eles jantarem. Ela sorri e o abraça, dizendo que era uma ótima ideia. Depois diz que o ama. Ele diz que também a ama, e muito. Que vai ser tudo apenas perfeito daqui para frente. Amém, ela diz, e o abraça forte. Procura exibir toda a ansiedade e felicidade que sentem enquanto contem toda a insegurança e o medo. O uber chega. Eles embarcam e conversam sobre séries durante todo o caminho. Quando passam por um supermercado, ele sugere de já descer ali mesmo. Entrega a chave para ela e diz que será rápido. E desce. Ela não tem tempo de dizer mas sente-se magoada de chegar em casa sozinha. Era algo que ela queria fazer com ele, algo grande, chegar em casa juntos pela primeira vez. Suspira, dá boa noite ao motorista e sai do carro. Tudo bem, fazer o que. Chegaria sozinha então. Sobe no elevador, de braços cruzados, e quando chega no seu andar, separa a chave e destranca a porta. Acende luz. E expira longamente. Aquela era sua casa agora. Fecha a porta atrás de si, checa o relógio: oito e dez da noite. Como ficou tão tarde tão de repente? Incomodada com o silencio, ela abre o spotify e deixa musicas tocando no aleatório enquanto tira a roupa, pega toalha e o pijama e vai para o banheiro. Entra no box e abre o chuveiro, mas ele não esquenta. Ela abre um pouco mais, mexe gira o caninho, vai ajeitando. Até finalmente chegar na temperatura certa. Que trabalheira, ela pensa. O da minha casa é melhor. Em seguida se corrige, lembrando-se de que esse é o chuveiro da sua casa. Olha em volta, para os azulejos brancos e os pretos. Para a ausência de prateleira com shampoos e cremes. E sente vontade de chorar. Não sabe porque, não sabe da onde vem essa súbita angustia que a possui. Fica ainda mais angustiada ao perceber que está angustiada na primeira noite na casa nova. Geme alto uma única vez, três lagrimas lhe escapam antes dela botar o rosto debaixo do chuveiro e esfregar bem os olhos. Não é nada demais, tá tudo bem. Precisa se acostumar, só isso. Como que dizem em inglês?, quando alguém está doente de saudade de casa? Ri em seguida do que pensou, doente de saudade, que expressão nada a ver. E se assusta ao lembrar: homesick. Era essa a palavra. Homesick. Por isso estava pensando em “doente” de saudade, afinal. Ouve som de porta abrindo. Não tem certeza se é ele até ele gritar:

—Cheguei.

Ela fecha o chuveiro com uma mao e pega a toalha com a outra. Estava sozinha, era por isso que estava angustiada. Ouvir o som da voz dele e saber que ele estava em casa já a tranquilizava. 

—Cê deixou a porta aberta? -ele pergunta, quando ela entra na sala, já vestida com o pijama.

—Acho que sim.

—Não pode né. E se alguém entra aqui?

Ele vai para a cozinha, pegando copos e pratos para a refeição.

—É que você já ia voltar também...

—Mesmo assim.

—Tá bom, desculpa.

Ele vem e a abraça.

—Tudo bem, não to brigando com você. Só... prefiro a porta sempre trancada, sei lá. Vai que, né.

—Uhum.

Silêncio.

—Foi bom o banho? Gostou do chuveiro?

—Ah. Mais ou menos.

—Como assim?

—O da minha casa era melhor

—Ah.

—Esse demora pra esquentar, todo confuso esse pauzinho de ficar girando...

—Eu te explico depois, mas. Se quiser trocar...

—Ah eu prefiro.

—Tabom. Eu troco o chuveiro depois.

Sentam-se para comer e ela percebe que ele não gostou nada daquilo. Sabia que o chuveiro era o que ele tinha trazido da casa dele. Mas que trocasse, ela não tinha gostado. O que fazer? Ele morde o hamburguer, diz que está muito bom. Ela ri, dizendo que hamburguer congelado nunca é muito bom. Ele não diz nada. Pede para colocar alguma musica na fila. Quando terminam de comer, ele estende o braço, lhe chamando para dançar. Sozinhos no meio da sala, eles sacodem os braços, o corpo, pulam, totalmente desengonçados e sem ritmo. Mas não se importam: estão em casa. Depois se abraçam e se beijam, contentes. Lentamente passam a mao um pelo corpo do outro, como sinal, até enfim começarem a se despir. Transam no sofá, mais excitados por poderem fazer isso no sofá do que qualquer outra coisa. Quando terminam, deitados, abraçados, ela boceja e se ajeita no ombro dele.

—É, melhor ir pra cama hein.

Ela concorda e ele a pega no colo. Ela grita, surpresa, e vão. Ele diz que vai escovar os dentes e vai para o banheiro. Ele diz, mentalmente, para o reflexo que ve no espelho, que não há mais volta. Está imensamente feliz de estar ali com ela, só consegue sentir alegria. Mas por que então há também essa pequena angustia no fundo do peito? Fica ainda mais angustiado ao perceber que está angustiado. Não é nem angustia afinal, é só. Preocupação. Medo, talvez. Coisa boba, nada demais. Queria tanto sentir-se limpo de todos os males. E sabia que havia um jeito de se sentir assim: confessando a ela tudo que sente. Suspira, limpando a escova de dentes. Até se imagina entrando no quarto, entrando debaixo da coberta, a abraçando e dizendo tudo que vinha sentindo. Até imagina as palavras que usaria. Mas quando entra no quarto e ela estica os dois braços, chamando-o, ele sorri e apaga a luz e deita na cama. Ela o abraça e se sente em casa. Segura. Acolhida. Pensa que esse é um bom momento para dizer para ele tudo que vem sentindo, todos os medos. Dizer o motivo pelo qual tinha dormido tão mal e estava com tanto sono. Sabe que ao final irá se sentir melhor. Boceja mais uma vez e ele diz:

—Bora, vamo dormir logo, amor. Amanhã começa nossa rotina de trabalhar.

—Ai, não, por que me lembrou disso?

Ele ri e a beija.

—Dorme bem viu.

—Você também, ela responde, e o beija rapidamente. Suspira, preocupada com a rotina que começa amanhã. Ele morde o lábio inferior, preocupado com a rotina que começa amanhã

—Boa noite, ele diz.

—Boa noite, ela diz.

E adormecem. Um bom tempo depois.